sexta-feira, 4 de outubro de 2013

64 - A GAROTINHA FEIA


Onze servos do Deus de Muitas Caras se reuniram naquela noite embaixo do templo, mais do que ela jamais vira juntos de uma única vez. Apenas o fidalgote e o sujeito gordo chegaram pela porta da frente; o restante veio por caminhos secretos, através de túneis e passagens ocultas. Vestiam túnicas pretas e brancas. mas, conforme tomava seu assento, cada homem puxava o capuz para baixo, para mostrar o rosto que havia escolhido usar naquele dia. As altas cadeiras eram esculpidas em ébano e represeiro, como as portas do templo acima. As cadeiras de ébano tinham rostos de represeiros na parte de trás, e as cadeiras de represeiro tinham rostos esculpidos em ébano.
Outro acólito estava do lado oposto do salão com um garrafão de vinho tinto escuro. Ela segurava a água. Sempre que um dos servos desejava beber, erguia os olhos ou curvava um dedo, e um deles - ou ambos - ia até lá encher seu copo. Mas, na maior parte do tempo, ficaram esperando olhares que nunca vieram. Sou esculpida em pedra, ela recordou a si mesma. Sou uma estátua, como os Senhores do Mar que ficam ao longo do Canal dos Heróis. A água estava pesada, mas seus braços eram fortes.
Os sacerdotes usavam a língua de Bravos, embora, uma vez, três falaram acaloradamente em Alto Valiriano por alguns minutos. Em geral, a garota entendia as palavras, mas eles falavam com voz suave, e nem sempre ela conseguia ouvir.
- Conheço este homem - ela ouviu um sacerdote com o rosto de uma vítima da praga dizer.
- Conheço este homem - o sujeito gordo ecoou, enquanto ela o servia.
Mas o homem bonito disse:
- Darei a este homem o presente, não o conheço. - Mais tarde, o vesgo disse a mesma coisa de mais alguém.
Depois de três horas de vinho e conversas, os sacerdotes partiram ... todos menos o homem gentil, a criança abandonada e aquele cujo rosto mostrava marcas da praga. Suas bochechas estavam cobertas com feridas purulentas e o cabelo tinha caído. Sangue pingava de uma narina, e havia crostas nos cantos dos dois olhos.
- Nosso irmão quer ter algumas palavras com você, filha - o homem gentil disse para ela. - Sente-se, se desejar. - Ela se sentou em uma cadeira de represeiro com rosto de ébano. Feridas ensanguentadas não a aterrorizavam. Havia muito tempo que estava na Casa do Preto e Branco para se assustar com um rosto enganoso.
- Quem é você? - o rosto com a praga perguntou, quando ficaram sozinhos.
- Ninguém.
- Não é assim. Você é Arya da Casa Stark, que morde o lábio e não pode contar uma mentira.
- Eu era. Não sou agora.
- Por que está aqui, mentirosa?
- Para servir. Para aprender. Para mudar meu rosto.
- Primeiro, mude seu coração. O presente do Deus de Muitas Caras não é um brinquedo de criança. Você mataria para seus próprios propósitos, para sua própria satisfação. Nega isso?
Ela mordeu o lábio.
- Eu ...
Ele a esbofeteou.
O golpe deixou seu rosto ardendo, mas ela sabia que tinha merecido.
- Obrigada. - Com tapas suficientes, poderia parar de morder o lábio. Arya fazia aquilo, não o lobo da noite. - Eu nego.
- Você mente. Posso ver a verdade nos seus olhos. Você tem olhos de lobo e gosto por sangue.
Sor Gregor, ela não podia deixar de pensar. Dunsen, Raff, o Querido. Sor Ilyn, Sor Meryn, Rainha Cersei. Se falasse, teria que mentir, e ele saberia. Manteve silêncio.
- Você era uma gata, me disseram. Rondando pelos becos que cheiram a peixe, vendendo vôngoles e mexilhões por dinheiro. Uma vida pequena, bem adequada a uma criatura pequena como você. Peça e isso lhe será devolvido. Empurre seu carrinho de mão, grite para vender seus produtos, seja feliz. Seu coração é muito brando para ser uma de nós.
Ele pretende me mandar embora.
- Não tenho coração. Tenho apenas um buraco. Matei muitas pessoas. Posso matar você se eu quiser.
- Isso teria um gosto doce para você?
Ela não sabia a resposta correta.
- Talvez.
- Então você não pertence a este lugar. A morte não traz doçura nesta casa. Não somos guerreiros, nem soldados, nem fanfarrões bravosis com o peito estufado de orgulho. Não matamos para servir a algum senhor, para engordar nossas bolsas, para afagar nosso orgulho. Nunca damos o presente para agradar a nós mesmos. Nem escolhemos quem matar. Somos apenas servos do Deus de Muitas Caras.
- Valar dohaeris. - Todos os homens devem servir.
- Você conhece as palavras, mas é orgulhosa demais para servir. Uma serva deve ser humilde e obediente.
- Eu obedeço. E posso ser mais humilde do que qualquer um.
Aquilo o fez rir.
- Você será a própria deusa da humildade, tenho certeza. Mas consegue pagar o preço?
- Que preço?
- O preço é você. O preço é tudo o que você tem e tudo o que já esperou ter. Tomamos seus olhos e os devolvemos a você. Da próxima vez, pegaremos seus ouvidos, e você andará no silêncio. Você nos dará suas pernas, e rastejará. Você não será filha de ninguém, esposa de ninguém, mãe de ninguém. Seu nome será uma mentira, e até mesmo o rosto que você usar não será o seu.
Ela quase mordeu o lábio novamente, mas dessa vez parou a tempo. Meu rosto é uma piscina escura, escondendo tudo, não mostrando nada. Pensou em todos os nomes que já usara: Arry, Doninha, Nymeria, Gata dos Canais. Pensou naquela garota estúpida de Winterfell, chamada Arya Cara de Cavalo. Nomes não importavam.
- Posso pagar o preço. Me dê um rosto.
- Rostos devem ser ganhos.
- Diga-me como.
- Dando um certo presente para um certo homem. Pode fazer isso?
- Que homem?
- Ninguém que você conheça.
- Não conheço um monte de gente.
- Ele é um deles. Um estranho. Ninguém que você ame, ninguém que você odeie, ninguém que jamais tenha visto. Você o matará?
- Sim.
- Então, amanhã, você será a Gata dos Canais novamente. Use aquele rosto, observe, obedeça. E veremos se é realmente digna de servir Aquele de Muitas Caras.
Então, no dia seguinte, ela voltou para Brusco e suas filhas na casa do canal. Os olhos de Brusco se arregalaram quando ele a viu, e Brea teve um pequeno sobressalto.
- Valar morghulis - a Gata disse, a modo de cumprimento.
- Valar dohaeris - Brusco respondeu.
Depois disso, foi como se ela nunca tivesse partido.
Deu a primeira olhada no homem que deveria matar mais tarde, naquela manhã, enquanto empurrava seu carrinho de mão pelas ruas pavimentadas que passavam pela frente do Porto Púrpura. Era um velho, já passado dos cinquenta anos. Ele já viveu muito tempo, tentou dizer a si mesma. Por que ele teve tantos anos e meu pai teve tão poucos? Mas a Gata dos Canais não tinha pai, então manteve aquele pensamento consigo.
- Vôngoles, mariscos e moluscos - a Gata gritou, enquanto ele passava - ostras, camarões e gordos mexilhões verdes. - Até sorriu para ele. Algumas vezes, um sorriso era tudo o que era preciso para fazê-los parar e comprar. O velho não sorriu de volta. Fez uma careta para ela e seguiu adiante, espirrando água ao passar em uma poça. O respingo molhou os pés dela.
Ele não tem cortesia, ela pensou, observando-o partir. Seu rosto é duro e mesquinho. O nariz do velho era pontudo e afiado, os lábios eram finos, os olhos pequenos e juntos. O cabelo estava ficando cinza, mas a barbicha pontuda em seu queixo ainda era negra. A Gata achou que podia ser tingida, e se perguntou por que ele não pintava o cabelo também. Um dos ombros era mais alto do que o outro, dando-lhe um aspecto torto.
- É um homem mau - anunciou naquela noite, quando voltou para a Casa do Preto e Branco. - Seus lábios são cruéis, os olhos são mesquinhos, e ele tem uma barba de canalha.
O homem gentil riu.
- Ele é um homem como qualquer outro, com luz e escuridão. Não cabe a você julgá-lo.
Aquilo a fez parar.
- Os deuses o julgaram?
- Alguns deuses, talvez. Para que servem os deuses se não para julgar os homens? O Deus de Muitas Caras, contudo, não pesa as almas dos homens. Ele dá seu presente para os melhores homens tanto quanto dá para os piores. De outra forma, os bons viveriam para sempre.
As mãos do velho eram a pior coisa nele, a Gata concluiu no dia seguinte, enquanto o observava por detrás de seu carrinho de mão. Os dedos eram compridos e ossudos, sempre se movendo, coçando a barba, cutucando uma orelha, tamborilando em uma mesa, se mexendo, se mexendo, se mexendo. Suas mãos parecem duas aranhas brancas. Quanto mais olhava aquelas mãos, mais as odiava.
- Ele mexe demais as mãos - contou para eles, no templo. - Ele deve estar cheio de medo. O presente lhe trará paz.
- O presente traz paz para todos os homens.
- Quando eu o matar, ele olhará nos meus olhos e me agradecerá.
- Se ele fizer isso, você terá falhado. Seria melhor se ele não notasse você de jeito nenhum.
O velho era algum tipo de comerciante, a Gata concluiu após observá-lo por alguns dias. Seu comércio estava relacionado com o mar, embora ela nunca o tivesse visto colocar o pé em um navio. Ele passava os dias sentado em uma loja de sopa perto do Porto Púrpura, uma taça de caldo de cebola esfriando junto ao cotovelo enquanto remexia papéis, lacrava-os com cera e falava em tom cortante com um desfile de capitães, armadores e outros comerciantes, nenhum dos quais parecia gostar muito dele.
Mesmo assim, eles lhe traziam dinheiro: bolsas de couro cheias de ouro, de prata e das moedas de ferro quadradas de Bravos. O velho contava-as cuidadosamente, classificando-as e empilhando-as ordenadamente, umas com as outras. Ele nunca olhava para as moedas. Em vez disso, ele as mordia, sempre no lado esquerdo de sua boca, onde ainda tinha todos os dentes. De tempos em tempos, girava uma na mesa e ouvia o som que fazia quando parava.
E, quando todas as moedas estavam contadas e provadas, o velho rabiscava algo em um pergaminho, carimbava-o com seu selo e dava ao capitão. Ou, então, balançava a cabeça e empurrava as moedas de volta. Sempre que fazia isso, o outro homem ficava com o rosto vermelho de raiva, ou pálido e com o olhar assustado.
A Gata não entendia.
- Eles pagam ouro e prata para ele, mas ele só lhes dá escritos. São estúpidos?
- Alguns, talvez. A maioria é simplesmente cautelosa. Alguns acham que podem enganá-lo. Mas ele não é um homem que se possa enganar facilmente.
- Mas o que ele está vendendo?
- Ele está escrevendo a cada um deles um compromisso. Se seus navios se perderem em uma tempestade ou forem tomados por piratas, ele promete pagar o valor da embarcação e de todo o seu conteúdo.
- É algum tipo de aposta.
- Uma espécie. Uma aposta que todo capitão espera perder.
- Sim, mas se ganharem ...
- ... eles perdem seus navios, algumas vezes perdem muitas vidas. Os mares são perigosos, ainda mais no outono. Sem dúvida, muitos capitães que afundaram em uma tempestade tiveram um pouco de consolo com o compromisso que tinham em Bravos, sabendo que suas viúvas e filhos não ficariam desamparados. - Um sorriso triste tomou seus lábios. - Mas uma coisa é escrever tal compromisso, e outra é cumpri-lo.
A Gata entendeu. Um deles deve odiá-lo. Um deles veio até a Casa do Preto e Branco e rezou para que o deus o levasse. Ela se perguntava quem teria sido, mas o homem gentil não lhe contaria.
- Não cabe a você bisbilhotar esses assuntos - ele disse. - Quem é você?
- Ninguém.
- Ninguém não faz perguntas. - Ele pegou as mãos dela. - Se não pode fazer isso, só precisa falar. Não há vergonha nisso. Alguns são feitos para servir ao Deus de Muitas Caras e outros não. Diga as palavras, e tirarei essa tarefa de você.
- Eu farei isso. Disse que faria. Vou fazer.
Como, no entanto? Aquilo era mais difícil.
Ele tinha guardas. Dois, um alto e magro e um baixo e robusto. Estavam com ele em todos os lugares, desde quando saía de casa pela manhã até voltar à noite. Não deixavam ninguém se aproximar do velho sem sua permissão. Uma vez, um bêbado quase deu um encontrão nele quando saiu da loja de sopa para ir para casa, mas o magro se colocou entre os dois e deu um empurrão tão forte no homem, que ele caiu no chão. Na loja de sopa, o baixo sempre provava o caldo de cebola primeiro. O velho esperava até que o caldo tivesse esfriado antes de tomar um gole, tempo suficiente para ter certeza de que seu guarda não adoecera.
- Ele está assustado - ela percebeu - ou então sabe que alguém quer matá-lo.
- Ele não sabe - falou o homem gentil - mas suspeita.
- Os guardas vão com ele até quando ele vai colocar água para esquentar - ela disse- mas ele não vai quando eles vão. O alto é o mais rápido. Esperarei até que esteja preparando a água, vou até a loja de sopa e esfaqueio o velho no meio dos olhos.
- E o outro guarda?
- Ele é lento e estúpido. Posso matá-lo também.
- E você é algum carniceiro de campo de batalha, derrubando qualquer homem que atravessa seu caminho?
-Não.
- Espero que não. Você é uma serva do Deus de Muitas Caras, e nós servimos Àquele com Muitas Caras dando seu presente apenas para os que foram marcados e escolhidos.
Ela entendeu. Matá-lo. Matar apenas ele.
Ficou mais três dias observando, antes de descobrir uma maneira, e outro dia praticando com sua lâmina de dedo. Roggo Vermelho lhe ensinara a usá-la, mas ela não batia uma carteira desde antes de tirarem sua visão. Queria ter certeza de que ainda sabia como fazer. Suave e rápido, esse é o jeito, sem se atrapalhar, disse para si mesma, e deslizou a pequena lâmina para fora da manga, uma vez, e mais outra, e outra. Quando ficou satisfeita em ver que ainda se lembrava, afiou o aço em uma pedra de amolar até que o fio reluziu azul-prateado à luz da vela. A outra parte era mais complicada, mas a criança abandonada estava ali para ajudá-la.
- Darei o presente ao homem amanhã - anunciou, quando estava quebrando o jejum.
- Aquele com Muitas Caras ficará satisfeito. - O homem gentil se levantou. - A Gata dos Canais é muito conhecida. Se for vista fazendo isso, pode trazer problemas para Brusco e suas filhas. É hora de você ter outro rosto.
A garota não sorriu, mas por dentro estava satisfeita. Perdera a Gata uma vez, e lamentara por isso. Não queria perdê-la novamente.
- Que aparência vou ter?
- Feia. As mulheres olharão para o outro lado quando a virem. As crianças a encararão e apontarão. Homens fortes terão pena de você, alguns podem até derramar uma lágrima. Ninguém que olhar para você vai esquecê-la tão cedo. Venha.
O homem gentil tirou uma lanterna de ferro do gancho e a levou pela piscina negra e pelas filas de deuses escuros e silenciosos, até os degraus nos fundos do templo. A criança abandonada seguia atrás deles enquanto desciam. Ninguém falava. O raspar suave de pés calçados nos degraus era o único som. Dezoito degraus os levaram até as galerias, onde cinco passagens arqueadas se espalhavam como os dedos da mão de um homem. Lá embaixo, os degraus ficavam mais estreitos e mais íngremes, mas a garota os subira e descera mil vezes e eles não a assustavam. Mais vinte e dois degraus e estavam no porão inferior. Os túneis ali eram estreitos e tortos, negros buracos de minhocas contorcendo-se até o coração da grande rocha. Uma passagem estava fechada por uma pesada porta de ferro. O sacerdote pendurou a lanterna em um gancho, deslizou a mão para dentro da túnica e exibiu uma chave ornamentada.
Arrepios subiam pelos braços dela. O santuário. Estavam indo ainda mais para baixo, até o terceiro nível, para as câmaras secretas onde apenas os sacerdotes eram permitidos.
A chave soou três vezes, muito suavemente, quando o homem gentil a girou na fechadura. A porta girou sobre dobradiças de ferro lubrificadas, sem fazer nenhum som. Atrás havia mais degraus, escavados na rocha sólida. O sacerdote pegou a lanterna mais uma vez e mostrou o caminho. A garota seguiu a luz, contando os degraus enquanto desciam. Quatro, cinco, seis, sete. Pegou-se desejando ter trazido seu bastão. Dez, onze, doze. Sabia quantos degraus havia entre o templo e o porão, entre o porão e o porão inferior, contara até mesmo os degraus da estreita escada em espiral que subia para o sótão, e os degraus na íngreme escada de madeira que subia para o telhado e o poleiro assolado pelo vento do lado de fora.
Mas esta escada era desconhecida para ela, e isso a tornava perigosa. Vinte e um, vinte e dois, vinte e três. A cada degrau o ar parecia ficar um pouco mais frio. Quando a contagem chegou a trinta, ela sabia que estavam embaixo até mesmo dos canais. Trinta e três, trinta e quatro. Quão fundo estavam indo?
Chegara a cinquenta e quatro quando os degraus finalmente terminaram em outra porta de ferro. O homem gentil abriu-a e entrou. Ela o seguiu, com a criança abandonada em seus calcanhares. Seus passos ecoavam na escuridão. O homem gentil ergueu a lanterna e descerrou os anteparos. A luz lavou todas as paredes ao redor deles.
Mil faces estavam olhando para ela.
Estavam penduradas nas paredes, atrás dela e diante dela, de cima até embaixo, por todos os lados que olhava, para onde quer que se virasse. Viu rostos velhos e rostos jovens, rostos pálidos e escuros, rostos suaves e rostos enrugados, rostos sardentos, rostos marcados por cicatrizes, rostos bonitos e rostos rústicos, homens e mulheres, meninos e meninas, até mesmo bebês, rostos sorridentes, rostos carrancudos, rostos cheios de ganância, raiva e luxúria, rostos carecas e rostos com cabelos eriçados. Máscaras, disse para si mesma, são apenas máscaras, mas, mesmo enquanto o pensamento passava por sua cabeça, sabia que não eram. Eram peles.
- Elas assustam você, filha? - perguntou o homem gentil. - Não é tarde demais para você nos deixar. Isso é realmente o que você quer?
Arya mordeu o lábio. Não sabia o que queria. Se eu partir, para onde vou? Ela havia lavado e despido uma centena de cadáveres, coisas mortas não a assustavam. Eles os trazem aqui para baixo e tiram seus rostos, e daí? Ela era a loba da noite, nenhum pedaço de pele podia assustá-la. Capuzes de couro, é isso o que são, não podem me ferir.
- Faça isso - ela disse, abruptamente.
Ele a levou pela câmara, por uma fileira de túneis que conduziam a passagens laterais. A luz da lanterna dele iluminou um de cada vez. Um túnel fora murado com ossos humanos, seu teto suportado por colunas de crânios. Outro se abria para degraus sinuosos que desciam ainda mais. Quantos porões há? Ela se perguntava. Seria possível descer para sempre?
- Sente-se - o sacerdote ordenou. Ela se sentou. - Agora, feche os olhos, filha. - Ela fechou os olhos. - Isso vai doer - ele a avisou - mas a dor é o preço do poder. Não se mova.
Parada como uma pedra, ela pensou. Ficou sentada imóvel. O corte foi rápido, a lâmina afiada. Normalmente, o metal seria frio contra sua carne, mas pareceu morno em vez disso. Ela podia sentir o sangue escorrendo por sua face, uma ondulante cortina vermelha caindo por sua sobrancelha, bochechas e queixo, e entendeu porque o sacerdote a fizera fechar os olhos. Quando alcançou seus lábios, o gosto era de sal e cobre. Ela o lambeu e estremeceu.
- Traga-me o rosto - disse o homem gentil. A criança abandonada não respondeu, mas ela ouviu seus chinelos sussurrando pelo chão de pedra. Para a garota, ele disse: - Beba isso - e pressionou uma taça em sua mão. Ela bebeu tudo de uma vez. Era muito azedo, como dar uma dentada em um limão. Mil anos atrás, conhecera uma garota que amava bolos de limão. Não, essa não era eu, era apenas Arya.
- Pantomimeiros mudam seu rosto com truques - o homem gentil dizia - e feiticeiros usam sedução, tecem luz, sombra e desejo para fazer ilusões que enganam o olho. Essas artes você deve aprender, mas o que fazemos aqui vai mais profundo. Homens sábios podem ver através dos truques, e a sedução se dissolve diante de olhos afiados, mas o rosto que você está prestes a vestir será tão verdadeiro e sólido quanto o rosto com o qual nasceu. Mantenha os olhos fechados. - Ela sentiu os dedos dele afastando seus cabelos. - Fique parada. Isso vai parecer estranho. Você pode ficar atordoada, mas não deve se mover.
Então veio um puxão e um ruído suave enquanto o novo rosto era colocado sobre o antigo. O couro raspou em sua testa, seco e duro, mas conforme seu sangue o ensopava, tornava-se macio e flexível. Suas bochechas ficavam mornas, coradas. Ela podia sentir seu coração palpitando sob o peito e, por um longo momento, não conseguiu respirar. Mãos se fecharam ao redor de sua garganta, duras como pedra, sufocando-a. Suas próprias mãos se ergueram para agarrar os braços de seu agressor, mas não havia ninguém ali. Uma terrível sensação de medo tomou conta dela, e ela ouviu uma voz, um barulho horrível de algo sendo esmagado, acompanhado por uma dor cegante. Um rosto flutuou diante dela, gordo, barbudo, brutal, sua boca torcida pela raiva. Ouviu o sacerdote dizer:
- Respire, filha. Expire o medo. Afaste as sombras. Ele está morto. Ela está morta. A dor dela se foi. Respire.
A garota respirou profundamente, estremecendo, e percebeu que era verdade. Ninguém a estava sufocando, ninguém estava batendo nela. Mesmo assim, sua mão estava tremendo quando a levantou para tocar seu rosto. Pedaços de sangue seco se desintegraram ao toque de seus dedos, negros sob a luz da lanterna. Sentiu as bochechas, tocou os olhos, traçou a linha do queixo.
- Meu rosto ainda é o mesmo.
- É? Tem certeza?
Ela tinha certeza? Não sentia nenhuma mudança, mas talvez fosse algo que não pudesse sentir. Passou a mão pelo rosto, de cima até embaixo, como vira Jaqen H'ghar fazer certa vez, ainda em Harrenhal. Quando ele fez isso, seu rosto inteiro tinha ondulado e mudado. Quando ela fez, nada aconteceu.
- Sinto como se fosse o mesmo.
- Para você - disse o sacerdote. - Não parece o mesmo.
- Para os olhos dos outros, seu nariz e queixo estão quebrados - disse a criança abandonada. - Um lado de seu rosto cedeu, onde o osso da bochecha foi quebrado, e metade de seus dentes está faltando.
Ela sondou por dentro da boca com a língua, mas não encontrou buracos ou dentes quebrados. Feitiçaria, pensou. Tenho um novo rosto. Um rosto feio e quebrado.
- Você pode ter pesadelos por um tempo - avisou o homem gentil. - O pai dela a espancava com tanta frequência e brutalidade que ela nunca esteve realmente livre da dor ou do medo, até vir a nós.
- Vocês o mataram?
- Ela pediu o presente para si mesma, não para seu pai.
Vocês deviam ter matado ele.
Ele devia ter lido seus pensamentos.
- A morte veio para ele no fim, como vem para todos os homens. Como deve vir para um certo homem pela manhã. - Ele ergueu a lâmpada. - Terminamos aqui.
Por agora. Enquanto faziam o caminho de volta para os degraus, os buracos vazios dos olhos das peles nas paredes pareciam segui-la. Por um momento, ela quase pôde ver seus lábios se movendo, sussurrando sombrios e doces segredos uns para os outros, em palavras muito fracas para escutar.
O sono não veio com facilidade naquela noite. Enrolada nos cobertores, ela se virava de um lado para o outro no frio quarto escuro, mas, para onde se virasse, via os rostos. Eles não têm olhos, mas podem me ver. Via o rosto de seu pai pendurado na parede. Ao lado dele estava o da senhora sua mãe e, embaixo deles, seus três irmãos em uma fileira. Não. Isso era alguma outra garota. Não sou ninguém, e meus únicos irmãos vestem túnicas pretas e brancas. No entanto, lá estava o cantor negro, estava o cavalariça que ela matara com a Agulha, estava o escudeiro cheio de espinhas da pousada do Tridente e, acima de todos eles, a sentinela cuja garganta ela cortara para fugir de Harrenhal. Cócegas estava pendurado na parede também, com buracos negros onde ficavam seus olhos cheios de malícia. A visão dele trouxe de volta a sensação da adaga em suas mãos enquanto ela a enfiava em suas costas, uma vez e outra e mais outra.
Quando finalmente o dia chegou a Bravos, veio cinza, escuro e nublado. A garota esperava por neblina, mas os deuses ignoraram suas preces, como os deuses faziam tão frequentemente. O ar estava limpo e frio, e o vento era uma pontada desagradável. Um bom dia para uma morte, ela pensou, Espontaneamente, sua oração veio até seus lábios. Sor Gregor, Dunsen, Raff, o Querido. Sor Ilyn, Sor Meryn, Rainha Cersei. Murmurou os nomes em silêncio. Na Casa do Preto e Branco, nunca se sabia quem podia estar escutando.
As galerias estavam cheias de roupas velhas, trajes reivindicados daqueles que vieram para a Casa do Preto e Branco para beber a paz da piscina do templo. Tudo, desde trapos de mendigos até ricas sedas e veludos, podia ser encontrado ali. Uma garota feia devia vestir roupas feias, ela decidiu, então escolheu um manto marrom manchado, desfiando na bainha, uma túnica verde-musgo que cheirava a peixe e um par de botas pesadas. Por último, colocou sua lâmina de dedo.
Não havia pressa, então decidiu tomar o caminho mais longo ao redor do Porto Púrpura. Foi para o outro lado da ponte, para a Ilha dos Deuses. A Gata dos Canais vendera vôngoles e mexilhões entre esses templos, sempre que a filha de Brusco, Talea, tinha seu sangue da lua fluindo e tinha que ir para a cama. Ela meio que esperava ver Talea vendendo por ali, talvez do lado de fora do Warren, onde todos os deuses menores esquecidos tinham seus pequenos santuários abandonados, mas aquilo era tolice. O dia estava muito frio, e Talea não gostava de levantar tão cedo. A estátua ao lado do santuário da Senhora Chorona de Lys estava chorando lágrimas de prata quando a garota feia passou por ela. Nos Jardins de Gelenei havia uma árvore dourada de trinta metros de altura com folhas de prata batida. Luzes de tochas brilhavam atrás das janelas de vidro chumbado no salão de madeira do Senhor da Harmonia, mostrando meia centena de tipos de borboletas em todas as suas cores vivas.
Uma vez, a garota lembrou, a Esposa do Marinheiro dera uma volta com ela e lhe contara as histórias dos estranhos deuses da cidade.
- Esta é a casa do Grande Pastor. Trios, de três cabeças, tem este campanário com três torres. A primeira cabeça devora os moribundos, e os ressuscitados emergem da terceira. Não sei o que a cabeça do meio deveria fazer. Estas são as Pedras do Deus Silencioso, e aqui está a entrada para o Labirinto do Criador de Padrões. Apenas aqueles que aprendem a andar nele com propriedade serão capazes de encontrar seu caminho para a sabedoria, dizem os sacerdotes do Padrão. Ali atrás, junto do canal, está o templo de Aquan, o Touro Vermelho. Todo décimo terceiro dia, seus sacerdotes cortam a garganta de um bezerro puro e branco e oferecem tigelas de sangue para os mendigos.
Hoje não era o décimo terceiro dia, pelo que parecia; os degraus do Touro Vermelho estavam vazios. Os deuses irmãos Semosh e Selloso sonhavam em templos gêmeos em lados opostos do Canal Negro, ligados por uma ponte esculpida em pedra. A garota cruzou por ali e fez seu caminho para as docas, depois pelo Porto do Trapeiro e passando pelas torres semi afundadas e pelas cúpulas da Cidade Afogada.
Um grupo de marinheiros lisenos vinha cambaleando do Porto Feliz quando ela passou, mas a garota não viu nenhuma das putas. O Navio estava fechado e abandonado; sua trupe de pantomimeiros sem dúvida ainda dormia. Mas, mais adiante, no cais, ao lado de um baleeiro ibenês, ela espiou o velho amigo da Gata, Tagganaro, jogando uma bola para a frente e para trás com Casso, Rei das Focas, enquanto seu último batedor de carteiras trabalhava entre a multidão de curiosos. Quando parou para ver e ouvir por um momento, Tagganaro olhou para ela sem reconhecê-la, mas Casso latiu e bateu as nadadeiras. Ele me reconhece, a garota pensou, ou então sente o cheiro de peixe. Apressou-se a sair dali.
Quando chegou ao Porto Púrpura, o velho estava escondido dentro da loja de sopa, em sua mesa costumeira, contando uma bolsa de moedas enquanto discutia com o capitão de um navio. O guarda alto pairava sobre ele. O baixo estava sentado perto da porta, onde podia dar uma boa olhada em qualquer um que entrasse. Aquilo não importava. Ela não pretendia entrar. Em vez disso, empoleirou-se no topo de uma pilha de madeiras a menos de vinte metros dali, enquanto o vento tempestuoso puxava seu manto com dedos fantasmagóricos.
Mesmo em um dia frio e cinzento como aquele, o porto era um lugar movimentado. Viu marinheiros à espreita de prostitutas, e prostitutas à espreita de marinheiros. Dois bravosis passaram em roupas amarrotadas, apoiados um no outro enquanto cambaleavam bêbados pelas docas, e suas lâminas chocalhavam de lado. Um sacerdote vermelho veio correndo, com sua túnica escarlate e carmesim sacudindo ao vento.
Era quase meio-dia antes que visse o homem que queria, um próspero armador que ela já vira fazendo negócios com o velho por três vezes. Grande, careca e corpulento, ele vestia um pesado manto de veludo marrom debruado com pele e um cinto de couro marrom ornamentado com luas e estrelas de prata. Algum contratempo deixara sua perna rígida. Ele caminhava lentamente, apoiado em uma bengala.
Ele serviria tão bem quanto qualquer um e melhor do que a maioria, a garota feia decidiu. Pulou da pilha e o seguiu. Uma dúzia de passos a colocou bem atrás dele, sua lâmina de dedo pronta. A bolsa do homem estava do lado direito, no cinto, mas seu manto estava no caminho. A lâmina dela brilhou para fora, suave e rápida, um corte profundo através do veludo e ele não sentiu nada. Roggo Vermelho teria sorrido ao ver aquilo. Ela deslizou a mão pelo vão, abriu a bolsa com sua lâmina de dedo, encheu o punho de ouro ...
O grande homem se virou.
- O que ...
O movimento enroscou o braço da garota nas dobras do manto dele quando ela puxou a mão. Moedas se espalharam pelos seus pés.
- Ladrão! - O grande homem ergueu o bastão para acertá-la. Ela chutou sua perna ruim, desviou e disparou quando ele caiu, empurrando uma mãe com uma criança. Mais moedas caíram de seus dedos e saltaram pela terra. Gritos de ladrão, ladrão soavam atrás dela. Um estalajadeiro barrigudo que passava por ali fez um gesto para agarrar seu braço, mas ela girou ao redor dele, passou voando por uma prostituta que gargalhava e correu apressadamente para o beco mais próximo.
A Gata dos Canais conhecia esses becos, e a menina feia se lembrava. Disparou para a esquerda, pulou um muro baixo, saltou sobre um pequeno canal e escapou por uma porta destrancada em algum armazém empoeirado. Todos os sons de perseguição haviam sumido, mas era melhor ter certeza. Esperou quase uma hora, então decidiu que era seguro partir, escalando o lado de um edifício e fazendo seu caminho pelos telhados quase até chegar ao Canal dos Heróis. A essa altura, o armador já devia ter juntado as moedas e a bengala e mancado até a loja de sopa. Devia estar bebendo uma caneca de caldo quente agora mesmo e reclamando para o velho sobre a garota feia que tentara roubar sua bolsa.
O homem gentil esperava por ela na Casa do Preto e Branco, sentado na beirada da piscina do templo. A garota feia sentou-se ao lado dele e colocou uma moeda na borda da piscina, entre eles. Era de ouro, com um dragão em uma face e um rei na outra.
- O dragão de ouro de Westeros - disse o homem gentil. - E como você conseguiu isso? Não somos ladrões.
- Não foi roubo. Tomei uma das dele, mas deixei com ele uma das nossas.
O homem gentil entendeu.
- E com esta moeda e as outras em sua bolsa, ele pagou um certo homem. Logo depois o coração daquele homem parou. É isso o que aconteceu? Muito triste. - O sacerdote pegou a moeda e a jogou na piscina. - Você tem muito e ainda mais para aprender, mas não é um caso perdido.
Naquela noite lhe deram de volta o rosto de Arya Stark.
Trouxeram uma túnica para ela também, a túnica grossa e macia de um acólito, preta de um lado e branca do outro.
- Vista isso quando estiver aqui - o sacerdote disse - mas saiba que terá pouca necessidade dela no momento. Amanhã você irá para Izembaro, para começar sua primeira aprendizagem. Pegue as roupas que quiser nas galerias lá embaixo. A patrulha da cidade está procurando por certa menina feia, conhecida por frequentar o Porto Púrpura, então é melhor que você tenha um novo rosto também. - Segurou-a pelo queixo, virou sua cabeça para um lado e para o outro, e assentiu. - Um rosto bonito, desta vez, eu acho. Tão bonito quanto seu próprio rosto. Quem é você, filhar
- Ninguém - ela respondeu. 

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