Onze servos do Deus
de Muitas Caras se reuniram naquela noite embaixo do templo, mais do
que ela jamais vira juntos de uma única vez. Apenas o fidalgote e o
sujeito gordo chegaram pela porta da frente; o restante veio por
caminhos secretos, através de túneis e passagens ocultas. Vestiam
túnicas pretas e brancas. mas, conforme tomava seu assento, cada
homem puxava o capuz para baixo, para mostrar o rosto que havia
escolhido usar naquele dia. As altas cadeiras eram esculpidas em
ébano e represeiro, como as portas do templo acima. As cadeiras de
ébano tinham rostos de represeiros na parte de trás, e as cadeiras
de represeiro tinham rostos esculpidos em ébano.
Outro acólito
estava do lado oposto do salão com um garrafão de vinho tinto
escuro. Ela segurava a água. Sempre que um dos servos desejava
beber, erguia os olhos ou curvava um dedo, e um deles - ou ambos - ia
até lá encher seu copo. Mas, na maior parte do tempo, ficaram
esperando olhares que nunca vieram. Sou esculpida em pedra, ela
recordou a si mesma. Sou uma estátua, como os Senhores do Mar que
ficam ao longo do Canal dos Heróis. A água estava pesada, mas seus
braços eram fortes.
Os sacerdotes
usavam a língua de Bravos, embora, uma vez, três falaram
acaloradamente em Alto Valiriano por alguns minutos. Em geral, a
garota entendia as palavras, mas eles falavam com voz suave, e nem
sempre ela conseguia ouvir.
- Conheço este
homem - ela ouviu um sacerdote com o rosto de uma vítima da praga
dizer.
- Conheço este
homem - o sujeito gordo ecoou, enquanto ela o servia.
Mas o homem bonito
disse:
- Darei a este
homem o presente, não o conheço. - Mais tarde, o vesgo disse a
mesma coisa de mais alguém.
Depois de três
horas de vinho e conversas, os sacerdotes partiram ... todos menos o
homem gentil, a criança abandonada e aquele cujo rosto mostrava
marcas da praga. Suas bochechas estavam cobertas com feridas
purulentas e o cabelo tinha caído. Sangue pingava de uma narina, e
havia crostas nos cantos dos dois olhos.
- Nosso irmão quer
ter algumas palavras com você, filha - o homem gentil disse para
ela. - Sente-se, se desejar. - Ela se sentou em uma cadeira de
represeiro com rosto de ébano. Feridas ensanguentadas não a
aterrorizavam. Havia muito tempo que estava na Casa do Preto e Branco
para se assustar com um rosto enganoso.
- Quem é você? -
o rosto com a praga perguntou, quando ficaram sozinhos.
- Ninguém.
- Não é assim.
Você é Arya da Casa Stark, que morde o lábio e não pode contar
uma mentira.
- Eu era. Não sou
agora.
- Por que está
aqui, mentirosa?
- Para servir. Para
aprender. Para mudar meu rosto.
- Primeiro, mude
seu coração. O presente do Deus de Muitas Caras não é um
brinquedo de criança. Você mataria para seus próprios propósitos,
para sua própria satisfação. Nega isso?
Ela mordeu o lábio.
- Eu ...
Ele a esbofeteou.
O golpe deixou seu
rosto ardendo, mas ela sabia que tinha merecido.
- Obrigada. - Com
tapas suficientes, poderia parar de morder o lábio. Arya fazia
aquilo, não o lobo da noite. - Eu nego.
- Você mente.
Posso ver a verdade nos seus olhos. Você tem olhos de lobo e gosto
por sangue.
Sor Gregor, ela não
podia deixar de pensar. Dunsen, Raff, o Querido. Sor Ilyn, Sor Meryn,
Rainha Cersei. Se falasse, teria que mentir, e ele saberia. Manteve
silêncio.
-
Você era uma gata, me disseram. Rondando pelos becos que cheiram a
peixe, vendendo vôngoles e mexilhões por dinheiro. Uma vida
pequena, bem adequada a uma criatura pequena como você. Peça e isso
lhe será devolvido. Empurre seu carrinho de mão, grite para vender
seus produtos, seja feliz. Seu coração é muito brando para ser uma
de nós.
Ele pretende me
mandar embora.
- Não tenho
coração. Tenho apenas um buraco. Matei muitas pessoas. Posso matar
você se eu quiser.
- Isso teria um
gosto doce para você?
Ela não sabia a
resposta correta.
- Talvez.
- Então você não
pertence a este lugar. A morte não traz doçura nesta casa. Não
somos guerreiros, nem soldados, nem fanfarrões bravosis com o peito
estufado de orgulho. Não matamos para servir a algum senhor, para
engordar nossas bolsas, para afagar nosso orgulho. Nunca damos o
presente para agradar a nós mesmos. Nem escolhemos quem matar. Somos
apenas servos do Deus de Muitas Caras.
- Valar dohaeris. -
Todos os homens devem servir.
- Você conhece as
palavras, mas é orgulhosa demais para servir. Uma serva deve ser
humilde e obediente.
- Eu obedeço. E
posso ser mais humilde do que qualquer um.
Aquilo o fez rir.
- Você será a
própria deusa da humildade, tenho certeza. Mas consegue pagar o
preço?
- Que preço?
- O preço é você.
O preço é tudo o que você tem e tudo o que já esperou ter.
Tomamos seus olhos e os devolvemos a você. Da próxima vez,
pegaremos seus ouvidos, e você andará no silêncio. Você nos dará
suas pernas, e rastejará. Você não será filha de ninguém, esposa
de ninguém, mãe de ninguém. Seu nome será uma mentira, e até
mesmo o rosto que você usar não será o seu.
Ela quase mordeu o
lábio novamente, mas dessa vez parou a tempo. Meu rosto é uma
piscina escura, escondendo tudo, não mostrando nada. Pensou em todos
os nomes que já usara: Arry, Doninha, Nymeria, Gata dos Canais.
Pensou naquela garota estúpida de Winterfell, chamada Arya Cara de
Cavalo. Nomes não importavam.
- Posso pagar o
preço. Me dê um rosto.
- Rostos devem ser
ganhos.
- Diga-me como.
- Dando um certo
presente para um certo homem. Pode fazer isso?
- Que homem?
- Ninguém que você
conheça.
- Não conheço um
monte de gente.
- Ele é um deles.
Um estranho. Ninguém que você ame, ninguém que você odeie,
ninguém que jamais tenha visto. Você o matará?
- Sim.
- Então, amanhã,
você será a Gata dos Canais novamente. Use aquele rosto, observe,
obedeça. E veremos se é realmente digna de servir Aquele de Muitas
Caras.
Então, no dia
seguinte, ela voltou para Brusco e suas filhas na casa do canal. Os
olhos de Brusco se arregalaram quando ele a viu, e Brea teve um
pequeno sobressalto.
- Valar morghulis -
a Gata disse, a modo de cumprimento.
- Valar dohaeris -
Brusco respondeu.
Depois disso, foi
como se ela nunca tivesse partido.
Deu a primeira
olhada no homem que deveria matar mais tarde, naquela manhã,
enquanto empurrava seu carrinho de mão pelas ruas pavimentadas que
passavam pela frente do Porto Púrpura. Era um velho, já passado dos
cinquenta anos. Ele já viveu muito tempo, tentou dizer a si mesma.
Por que ele teve tantos anos e meu pai teve tão poucos? Mas a Gata
dos Canais não tinha pai, então manteve aquele pensamento consigo.
-
Vôngoles, mariscos e moluscos - a Gata gritou, enquanto ele passava
- ostras, camarões e gordos mexilhões verdes. - Até sorriu para
ele. Algumas vezes, um sorriso era tudo o que era preciso para
fazê-los parar e comprar. O velho não sorriu de volta. Fez uma
careta para ela e seguiu adiante, espirrando água ao passar em uma
poça. O respingo molhou os pés dela.
Ele não tem
cortesia, ela pensou, observando-o partir. Seu rosto é duro e
mesquinho. O nariz do velho era pontudo e afiado, os lábios eram
finos, os olhos pequenos e juntos. O cabelo estava ficando cinza, mas
a barbicha pontuda em seu queixo ainda era negra. A Gata achou que
podia ser tingida, e se perguntou por que ele não pintava o cabelo
também. Um dos ombros era mais alto do que o outro, dando-lhe um
aspecto torto.
- É um homem mau -
anunciou naquela noite, quando voltou para a Casa do Preto e Branco.
- Seus lábios são cruéis, os olhos são mesquinhos, e ele tem uma
barba de canalha.
O homem gentil riu.
- Ele é um homem
como qualquer outro, com luz e escuridão. Não cabe a você
julgá-lo.
Aquilo a fez parar.
- Os deuses o
julgaram?
- Alguns deuses,
talvez. Para que servem os deuses se não para julgar os homens? O
Deus de Muitas Caras, contudo, não pesa as almas dos homens. Ele dá
seu presente para os melhores homens tanto quanto dá para os piores.
De outra forma, os bons viveriam para sempre.
As mãos do velho
eram a pior coisa nele, a Gata concluiu no dia seguinte, enquanto o
observava por detrás de seu carrinho de mão. Os dedos eram
compridos e ossudos, sempre se movendo, coçando a barba, cutucando
uma orelha, tamborilando em uma mesa, se mexendo, se mexendo, se
mexendo. Suas mãos parecem duas aranhas brancas. Quanto mais olhava
aquelas mãos, mais as odiava.
- Ele mexe demais
as mãos - contou para eles, no templo. - Ele deve estar cheio de
medo. O presente lhe trará paz.
- O presente traz
paz para todos os homens.
- Quando eu o
matar, ele olhará nos meus olhos e me agradecerá.
- Se ele fizer
isso, você terá falhado. Seria melhor se ele não notasse você de
jeito nenhum.
O velho era algum
tipo de comerciante, a Gata concluiu após observá-lo por alguns
dias. Seu comércio estava relacionado com o mar, embora ela nunca o
tivesse visto colocar o pé em um navio. Ele passava os dias sentado
em uma loja de sopa perto do Porto Púrpura, uma taça de caldo de
cebola esfriando junto ao cotovelo enquanto remexia papéis,
lacrava-os com cera e falava em tom cortante com um desfile de
capitães, armadores e outros comerciantes, nenhum dos quais parecia
gostar muito dele.
Mesmo assim, eles
lhe traziam dinheiro: bolsas de couro cheias de ouro, de prata e das
moedas de ferro quadradas de Bravos. O velho contava-as
cuidadosamente, classificando-as e empilhando-as ordenadamente, umas
com as outras. Ele nunca olhava para as moedas. Em vez disso, ele as
mordia, sempre no lado esquerdo de sua boca, onde ainda tinha todos
os dentes. De tempos em tempos, girava uma na mesa e ouvia o som que
fazia quando parava.
E, quando todas as
moedas estavam contadas e provadas, o velho rabiscava algo em um
pergaminho, carimbava-o com seu selo e dava ao capitão. Ou, então,
balançava a cabeça e empurrava as moedas de volta. Sempre que fazia
isso, o outro homem ficava com o rosto vermelho de raiva, ou pálido
e com o olhar assustado.
A Gata não
entendia.
- Eles pagam ouro e
prata para ele, mas ele só lhes dá escritos. São estúpidos?
- Alguns, talvez. A
maioria é simplesmente cautelosa. Alguns acham que podem enganá-lo.
Mas ele não é um homem que se possa enganar facilmente.
- Mas o que ele
está vendendo?
- Ele está
escrevendo a cada um deles um compromisso. Se seus navios se perderem
em uma tempestade ou forem tomados por piratas, ele promete pagar o
valor da embarcação e de todo o seu conteúdo.
- É algum tipo de
aposta.
- Uma espécie. Uma
aposta que todo capitão espera perder.
- Sim, mas se
ganharem ...
-
... eles perdem seus navios, algumas vezes perdem muitas vidas. Os
mares são perigosos, ainda mais no outono. Sem dúvida, muitos
capitães que afundaram em uma tempestade tiveram um pouco de consolo
com o compromisso que tinham em Bravos, sabendo que suas viúvas e
filhos não ficariam desamparados. - Um sorriso triste tomou seus
lábios. - Mas uma coisa é escrever tal compromisso, e outra é
cumpri-lo.
A Gata entendeu. Um
deles deve odiá-lo. Um deles veio até a Casa do Preto e Branco e
rezou para que o deus o levasse. Ela se perguntava quem teria sido,
mas o homem gentil não lhe contaria.
- Não cabe a você
bisbilhotar esses assuntos - ele disse. - Quem é você?
- Ninguém.
- Ninguém não faz
perguntas. - Ele pegou as mãos dela. - Se não pode fazer isso, só
precisa falar. Não há vergonha nisso. Alguns são feitos para
servir ao Deus de Muitas Caras e outros não. Diga as palavras, e
tirarei essa tarefa de você.
- Eu farei isso.
Disse que faria. Vou fazer.
Como, no entanto?
Aquilo era mais difícil.
Ele tinha guardas.
Dois, um alto e magro e um baixo e robusto. Estavam com ele em todos
os lugares, desde quando saía de casa pela manhã até voltar à
noite. Não deixavam ninguém se aproximar do velho sem sua
permissão. Uma vez, um bêbado quase deu um encontrão nele quando
saiu da loja de sopa para ir para casa, mas o magro se colocou entre
os dois e deu um empurrão tão forte no homem, que ele caiu no chão.
Na loja de sopa, o baixo sempre provava o caldo de cebola primeiro. O
velho esperava até que o caldo tivesse esfriado antes de tomar um
gole, tempo suficiente para ter certeza de que seu guarda não
adoecera.
- Ele está
assustado - ela percebeu - ou então sabe que alguém quer matá-lo.
- Ele não sabe -
falou o homem gentil - mas suspeita.
- Os guardas vão
com ele até quando ele vai colocar água para esquentar - ela disse-
mas ele não vai quando eles vão. O alto é o mais rápido.
Esperarei até que esteja preparando a água, vou até a loja de sopa
e esfaqueio o velho no meio dos olhos.
- E o outro guarda?
- Ele é lento e
estúpido. Posso matá-lo também.
- E você é algum
carniceiro de campo de batalha, derrubando qualquer homem que
atravessa seu caminho?
-Não.
- Espero que não.
Você é uma serva do Deus de Muitas Caras, e nós servimos Àquele
com Muitas Caras dando seu presente apenas para os que foram marcados
e escolhidos.
Ela entendeu.
Matá-lo. Matar apenas ele.
Ficou mais três
dias observando, antes de descobrir uma maneira, e outro dia
praticando com sua lâmina de dedo. Roggo Vermelho lhe ensinara a
usá-la, mas ela não batia uma carteira desde antes de tirarem sua
visão. Queria ter certeza de que ainda sabia como fazer. Suave e
rápido, esse é o jeito, sem se atrapalhar, disse para si mesma, e
deslizou a pequena lâmina para fora da manga, uma vez, e mais outra,
e outra. Quando ficou satisfeita em ver que ainda se lembrava, afiou
o aço em uma pedra de amolar até que o fio reluziu azul-prateado à
luz da vela. A outra parte era mais complicada, mas a criança
abandonada estava ali para ajudá-la.
- Darei o presente
ao homem amanhã - anunciou, quando estava quebrando o jejum.
- Aquele com Muitas
Caras ficará satisfeito. - O homem gentil se levantou. - A Gata dos
Canais é muito conhecida. Se for vista fazendo isso, pode trazer
problemas para Brusco e suas filhas. É hora de você ter outro
rosto.
A garota não
sorriu, mas por dentro estava satisfeita. Perdera a Gata uma vez, e
lamentara por isso. Não queria perdê-la novamente.
- Que aparência
vou ter?
- Feia. As mulheres
olharão para o outro lado quando a virem. As crianças a encararão
e apontarão. Homens fortes terão pena de você, alguns podem até
derramar uma lágrima. Ninguém que olhar para você vai esquecê-la
tão cedo. Venha.
O
homem gentil tirou uma lanterna de ferro do gancho e a levou pela
piscina negra e pelas filas de deuses escuros e silenciosos, até os
degraus nos fundos do templo. A criança abandonada seguia atrás
deles enquanto desciam. Ninguém falava. O raspar suave de pés
calçados nos degraus era o único som. Dezoito degraus os levaram
até as galerias, onde cinco passagens arqueadas se espalhavam como
os dedos da mão de um homem. Lá embaixo, os degraus ficavam mais
estreitos e mais íngremes, mas a garota os subira e descera mil
vezes e eles não a assustavam. Mais vinte e dois degraus e estavam
no porão inferior. Os túneis ali eram estreitos e tortos, negros
buracos de minhocas contorcendo-se até o coração da grande rocha.
Uma passagem estava fechada por uma pesada porta de ferro. O
sacerdote pendurou a lanterna em um gancho, deslizou a mão para
dentro da túnica e exibiu uma chave ornamentada.
Arrepios subiam
pelos braços dela. O santuário. Estavam indo ainda mais para baixo,
até o terceiro nível, para as câmaras secretas onde apenas os
sacerdotes eram permitidos.
A chave soou três
vezes, muito suavemente, quando o homem gentil a girou na fechadura.
A porta girou sobre dobradiças de ferro lubrificadas, sem fazer
nenhum som. Atrás havia mais degraus, escavados na rocha sólida. O
sacerdote pegou a lanterna mais uma vez e mostrou o caminho. A garota
seguiu a luz, contando os degraus enquanto desciam. Quatro, cinco,
seis, sete. Pegou-se desejando ter trazido seu bastão. Dez, onze,
doze. Sabia quantos degraus havia entre o templo e o porão, entre o
porão e o porão inferior, contara até mesmo os degraus da estreita
escada em espiral que subia para o sótão, e os degraus na íngreme
escada de madeira que subia para o telhado e o poleiro assolado pelo
vento do lado de fora.
Mas esta escada era
desconhecida para ela, e isso a tornava perigosa. Vinte e um, vinte e
dois, vinte e três. A cada degrau o ar parecia ficar um pouco mais
frio. Quando a contagem chegou a trinta, ela sabia que estavam
embaixo até mesmo dos canais. Trinta e três, trinta e quatro. Quão
fundo estavam indo?
Chegara a cinquenta
e quatro quando os degraus finalmente terminaram em outra porta de
ferro. O homem gentil abriu-a e entrou. Ela o seguiu, com a criança
abandonada em seus calcanhares. Seus passos ecoavam na escuridão. O
homem gentil ergueu a lanterna e descerrou os anteparos. A luz lavou
todas as paredes ao redor deles.
Mil faces estavam
olhando para ela.
Estavam penduradas
nas paredes, atrás dela e diante dela, de cima até embaixo, por
todos os lados que olhava, para onde quer que se virasse. Viu rostos
velhos e rostos jovens, rostos pálidos e escuros, rostos suaves e
rostos enrugados, rostos sardentos, rostos marcados por cicatrizes,
rostos bonitos e rostos rústicos, homens e mulheres, meninos e
meninas, até mesmo bebês, rostos sorridentes, rostos carrancudos,
rostos cheios de ganância, raiva e luxúria, rostos carecas e rostos
com cabelos eriçados. Máscaras, disse para si mesma, são apenas
máscaras, mas, mesmo enquanto o pensamento passava por sua cabeça,
sabia que não eram. Eram peles.
- Elas assustam
você, filha? - perguntou o homem gentil. - Não é tarde demais para
você nos deixar. Isso é realmente o que você quer?
Arya mordeu o
lábio. Não sabia o que queria. Se eu partir, para onde vou? Ela
havia lavado e despido uma centena de cadáveres, coisas mortas não
a assustavam. Eles os trazem aqui para baixo e tiram seus rostos, e
daí? Ela era a loba da noite, nenhum pedaço de pele podia
assustá-la. Capuzes de couro, é isso o que são, não podem me
ferir.
- Faça isso - ela
disse, abruptamente.
Ele a levou pela
câmara, por uma fileira de túneis que conduziam a passagens
laterais. A luz da lanterna dele iluminou um de cada vez. Um túnel
fora murado com ossos humanos, seu teto suportado por colunas de
crânios. Outro se abria para degraus sinuosos que desciam ainda
mais. Quantos porões há? Ela se perguntava. Seria possível descer
para sempre?
- Sente-se - o
sacerdote ordenou. Ela se sentou. - Agora, feche os olhos, filha. -
Ela fechou os olhos. - Isso vai doer - ele a avisou - mas a dor é o
preço do poder. Não se mova.
Parada como uma
pedra, ela pensou. Ficou sentada imóvel. O corte foi rápido, a
lâmina afiada. Normalmente, o metal seria frio contra sua carne, mas
pareceu morno em vez disso. Ela podia sentir o sangue escorrendo por
sua face, uma ondulante cortina vermelha caindo por sua sobrancelha,
bochechas e queixo, e entendeu porque o sacerdote a fizera fechar os
olhos. Quando alcançou seus lábios, o gosto era de sal e cobre. Ela
o lambeu e estremeceu.
-
Traga-me o rosto - disse o homem gentil. A criança abandonada não
respondeu, mas ela ouviu seus chinelos sussurrando pelo chão de
pedra. Para a garota, ele disse: - Beba isso - e pressionou uma taça
em sua mão. Ela bebeu tudo de uma vez. Era muito azedo, como dar uma
dentada em um limão. Mil anos atrás, conhecera uma garota que amava
bolos de limão. Não, essa não era eu, era apenas Arya.
- Pantomimeiros
mudam seu rosto com truques - o homem gentil dizia - e feiticeiros
usam sedução, tecem luz, sombra e desejo para fazer ilusões que
enganam o olho. Essas artes você deve aprender, mas o que fazemos
aqui vai mais profundo. Homens sábios podem ver através dos
truques, e a sedução se dissolve diante de olhos afiados, mas o
rosto que você está prestes a vestir será tão verdadeiro e sólido
quanto o rosto com o qual nasceu. Mantenha os olhos fechados. - Ela
sentiu os dedos dele afastando seus cabelos. - Fique parada. Isso vai
parecer estranho. Você pode ficar atordoada, mas não deve se mover.
Então veio um
puxão e um ruído suave enquanto o novo rosto era colocado sobre o
antigo. O couro raspou em sua testa, seco e duro, mas conforme seu
sangue o ensopava, tornava-se macio e flexível. Suas bochechas
ficavam mornas, coradas. Ela podia sentir seu coração palpitando
sob o peito e, por um longo momento, não conseguiu respirar. Mãos
se fecharam ao redor de sua garganta, duras como pedra, sufocando-a.
Suas próprias mãos se ergueram para agarrar os braços de seu
agressor, mas não havia ninguém ali. Uma terrível sensação de
medo tomou conta dela, e ela ouviu uma voz, um barulho horrível de
algo sendo esmagado, acompanhado por uma dor cegante. Um rosto
flutuou diante dela, gordo, barbudo, brutal, sua boca torcida pela
raiva. Ouviu o sacerdote dizer:
- Respire, filha.
Expire o medo. Afaste as sombras. Ele está morto. Ela está morta. A
dor dela se foi. Respire.
A garota respirou
profundamente, estremecendo, e percebeu que era verdade. Ninguém a
estava sufocando, ninguém estava batendo nela. Mesmo assim, sua mão
estava tremendo quando a levantou para tocar seu rosto. Pedaços de
sangue seco se desintegraram ao toque de seus dedos, negros sob a luz
da lanterna. Sentiu as bochechas, tocou os olhos, traçou a linha do
queixo.
- Meu rosto ainda é
o mesmo.
- É? Tem certeza?
Ela tinha certeza?
Não sentia nenhuma mudança, mas talvez fosse algo que não pudesse
sentir. Passou a mão pelo rosto, de cima até embaixo, como vira
Jaqen H'ghar fazer certa vez, ainda em Harrenhal. Quando ele fez
isso, seu rosto inteiro tinha ondulado e mudado. Quando ela fez, nada
aconteceu.
- Sinto como se
fosse o mesmo.
- Para você -
disse o sacerdote. - Não parece o mesmo.
- Para os olhos dos
outros, seu nariz e queixo estão quebrados - disse a criança
abandonada. - Um lado de seu rosto cedeu, onde o osso da bochecha foi
quebrado, e metade de seus dentes está faltando.
Ela sondou por
dentro da boca com a língua, mas não encontrou buracos ou dentes
quebrados. Feitiçaria, pensou. Tenho um novo rosto. Um rosto feio e
quebrado.
- Você pode ter
pesadelos por um tempo - avisou o homem gentil. - O pai dela a
espancava com tanta frequência e brutalidade que ela nunca esteve
realmente livre da dor ou do medo, até vir a nós.
- Vocês o mataram?
- Ela pediu o
presente para si mesma, não para seu pai.
Vocês deviam ter
matado ele.
Ele devia ter lido
seus pensamentos.
- A morte veio para
ele no fim, como vem para todos os homens. Como deve vir para um
certo homem pela manhã. - Ele ergueu a lâmpada. - Terminamos aqui.
Por agora. Enquanto
faziam o caminho de volta para os degraus, os buracos vazios dos
olhos das peles nas paredes pareciam segui-la. Por um momento, ela
quase pôde ver seus lábios se movendo, sussurrando sombrios e doces
segredos uns para os outros, em palavras muito fracas para escutar.
O
sono não veio com facilidade naquela noite. Enrolada nos cobertores,
ela se virava de um lado para o outro no frio quarto escuro, mas,
para onde se virasse, via os rostos. Eles não têm olhos, mas podem
me ver. Via o rosto de seu pai pendurado na parede. Ao lado dele
estava o da senhora sua mãe e, embaixo deles, seus três irmãos em
uma fileira. Não. Isso era alguma outra garota. Não sou ninguém, e
meus únicos irmãos vestem túnicas pretas e brancas. No entanto, lá
estava o cantor negro, estava o cavalariça que ela matara com a
Agulha, estava o escudeiro cheio de espinhas da pousada do Tridente
e, acima de todos eles, a sentinela cuja garganta ela cortara para
fugir de Harrenhal. Cócegas estava pendurado na parede também, com
buracos negros onde ficavam seus olhos cheios de malícia. A visão
dele trouxe de volta a sensação da adaga em suas mãos enquanto ela
a enfiava em suas costas, uma vez e outra e mais outra.
Quando finalmente o
dia chegou a Bravos, veio cinza, escuro e nublado. A garota esperava
por neblina, mas os deuses ignoraram suas preces, como os deuses
faziam tão frequentemente. O ar estava limpo e frio, e o vento era
uma pontada desagradável. Um bom dia para uma morte, ela pensou,
Espontaneamente, sua oração veio até seus lábios. Sor Gregor,
Dunsen, Raff, o Querido. Sor Ilyn, Sor Meryn, Rainha Cersei. Murmurou
os nomes em silêncio. Na Casa do Preto e Branco, nunca se sabia quem
podia estar escutando.
As galerias estavam
cheias de roupas velhas, trajes reivindicados daqueles que vieram
para a Casa do Preto e Branco para beber a paz da piscina do templo.
Tudo, desde trapos de mendigos até ricas sedas e veludos, podia ser
encontrado ali. Uma garota feia devia vestir roupas feias, ela
decidiu, então escolheu um manto marrom manchado, desfiando na
bainha, uma túnica verde-musgo que cheirava a peixe e um par de
botas pesadas. Por último, colocou sua lâmina de dedo.
Não havia pressa,
então decidiu tomar o caminho mais longo ao redor do Porto Púrpura.
Foi para o outro lado da ponte, para a Ilha dos Deuses. A Gata dos
Canais vendera vôngoles e mexilhões entre esses templos, sempre que
a filha de Brusco, Talea, tinha seu sangue da lua fluindo e tinha que
ir para a cama. Ela meio que esperava ver Talea vendendo por ali,
talvez do lado de fora do Warren, onde todos os deuses menores
esquecidos tinham seus pequenos santuários abandonados, mas aquilo
era tolice. O dia estava muito frio, e Talea não gostava de levantar
tão cedo. A estátua ao lado do santuário da Senhora Chorona de Lys
estava chorando lágrimas de prata quando a garota feia passou por
ela. Nos Jardins de Gelenei havia uma árvore dourada de trinta
metros de altura com folhas de prata batida. Luzes de tochas
brilhavam atrás das janelas de vidro chumbado no salão de madeira
do Senhor da Harmonia, mostrando meia centena de tipos de borboletas
em todas as suas cores vivas.
Uma vez, a garota
lembrou, a Esposa do Marinheiro dera uma volta com ela e lhe contara
as histórias dos estranhos deuses da cidade.
- Esta é a casa do
Grande Pastor. Trios, de três cabeças, tem este campanário com
três torres. A primeira cabeça devora os moribundos, e os
ressuscitados emergem da terceira. Não sei o que a cabeça do meio
deveria fazer. Estas são as Pedras do Deus Silencioso, e aqui está
a entrada para o Labirinto do Criador de Padrões. Apenas aqueles que
aprendem a andar nele com propriedade serão capazes de encontrar seu
caminho para a sabedoria, dizem os sacerdotes do Padrão. Ali atrás,
junto do canal, está o templo de Aquan, o Touro Vermelho. Todo
décimo terceiro dia, seus sacerdotes cortam a garganta de um bezerro
puro e branco e oferecem tigelas de sangue para os mendigos.
Hoje não era o
décimo terceiro dia, pelo que parecia; os degraus do Touro Vermelho
estavam vazios. Os deuses irmãos Semosh e Selloso sonhavam em
templos gêmeos em lados opostos do Canal Negro, ligados por uma
ponte esculpida em pedra. A garota cruzou por ali e fez seu caminho
para as docas, depois pelo Porto do Trapeiro e passando pelas torres
semi afundadas e pelas cúpulas da Cidade Afogada.
Um grupo de
marinheiros lisenos vinha cambaleando do Porto Feliz quando ela
passou, mas a garota não viu nenhuma das putas. O Navio estava
fechado e abandonado; sua trupe de pantomimeiros sem dúvida ainda
dormia. Mas, mais adiante, no cais, ao lado de um baleeiro ibenês,
ela espiou o velho amigo da Gata, Tagganaro, jogando uma bola para a
frente e para trás com Casso, Rei das Focas, enquanto seu último
batedor de carteiras trabalhava entre a multidão de curiosos. Quando
parou para ver e ouvir por um momento, Tagganaro olhou para ela sem
reconhecê-la, mas Casso latiu e bateu as nadadeiras. Ele me
reconhece, a garota pensou, ou então sente o cheiro de peixe.
Apressou-se a sair dali.
Quando
chegou ao Porto Púrpura, o velho estava escondido dentro da loja de
sopa, em sua mesa costumeira, contando uma bolsa de moedas enquanto
discutia com o capitão de um navio. O guarda alto pairava sobre ele.
O baixo estava sentado perto da porta, onde podia dar uma boa olhada
em qualquer um que entrasse. Aquilo não importava. Ela não
pretendia entrar. Em vez disso, empoleirou-se no topo de uma pilha de
madeiras a menos de vinte metros dali, enquanto o vento tempestuoso
puxava seu manto com dedos fantasmagóricos.
Mesmo em um dia
frio e cinzento como aquele, o porto era um lugar movimentado. Viu
marinheiros à espreita de prostitutas, e prostitutas à espreita de
marinheiros. Dois bravosis passaram em roupas amarrotadas, apoiados
um no outro enquanto cambaleavam bêbados pelas docas, e suas lâminas
chocalhavam de lado. Um sacerdote vermelho veio correndo, com sua
túnica escarlate e carmesim sacudindo ao vento.
Era quase meio-dia
antes que visse o homem que queria, um próspero armador que ela já
vira fazendo negócios com o velho por três vezes. Grande, careca e
corpulento, ele vestia um pesado manto de veludo marrom debruado com
pele e um cinto de couro marrom ornamentado com luas e estrelas de
prata. Algum contratempo deixara sua perna rígida. Ele caminhava
lentamente, apoiado em uma bengala.
Ele serviria tão
bem quanto qualquer um e melhor do que a maioria, a garota feia
decidiu. Pulou da pilha e o seguiu. Uma dúzia de passos a colocou
bem atrás dele, sua lâmina de dedo pronta. A bolsa do homem estava
do lado direito, no cinto, mas seu manto estava no caminho. A lâmina
dela brilhou para fora, suave e rápida, um corte profundo através
do veludo e ele não sentiu nada. Roggo Vermelho teria sorrido ao ver
aquilo. Ela deslizou a mão pelo vão, abriu a bolsa com sua lâmina
de dedo, encheu o punho de ouro ...
O grande homem se
virou.
- O que ...
O movimento
enroscou o braço da garota nas dobras do manto dele quando ela puxou
a mão. Moedas se espalharam pelos seus pés.
- Ladrão! - O
grande homem ergueu o bastão para acertá-la. Ela chutou sua perna
ruim, desviou e disparou quando ele caiu, empurrando uma mãe com uma
criança. Mais moedas caíram de seus dedos e saltaram pela terra.
Gritos de ladrão, ladrão soavam atrás dela. Um estalajadeiro
barrigudo que passava por ali fez um gesto para agarrar seu braço,
mas ela girou ao redor dele, passou voando por uma prostituta que
gargalhava e correu apressadamente para o beco mais próximo.
A Gata dos Canais
conhecia esses becos, e a menina feia se lembrava. Disparou para a
esquerda, pulou um muro baixo, saltou sobre um pequeno canal e
escapou por uma porta destrancada em algum armazém empoeirado. Todos
os sons de perseguição haviam sumido, mas era melhor ter certeza.
Esperou quase uma hora, então decidiu que era seguro partir,
escalando o lado de um edifício e fazendo seu caminho pelos telhados
quase até chegar ao Canal dos Heróis. A essa altura, o armador já
devia ter juntado as moedas e a bengala e mancado até a loja de
sopa. Devia estar bebendo uma caneca de caldo quente agora mesmo e
reclamando para o velho sobre a garota feia que tentara roubar sua
bolsa.
O homem gentil
esperava por ela na Casa do Preto e Branco, sentado na beirada da
piscina do templo. A garota feia sentou-se ao lado dele e colocou uma
moeda na borda da piscina, entre eles. Era de ouro, com um dragão em
uma face e um rei na outra.
- O dragão de ouro
de Westeros - disse o homem gentil. - E como você conseguiu isso?
Não somos ladrões.
- Não foi roubo.
Tomei uma das dele, mas deixei com ele uma das nossas.
O homem gentil
entendeu.
- E com esta moeda
e as outras em sua bolsa, ele pagou um certo homem. Logo depois o
coração daquele homem parou. É isso o que aconteceu? Muito triste.
- O sacerdote pegou a moeda e a jogou na piscina. - Você tem muito e
ainda mais para aprender, mas não é um caso perdido.
Naquela noite lhe
deram de volta o rosto de Arya Stark.
Trouxeram uma
túnica para ela também, a túnica grossa e macia de um acólito,
preta de um lado e branca do outro.
-
Vista isso quando estiver aqui - o sacerdote disse - mas saiba que
terá pouca necessidade dela no momento. Amanhã você irá para
Izembaro, para começar sua primeira aprendizagem. Pegue as roupas
que quiser nas galerias lá embaixo. A patrulha da cidade está
procurando por certa menina feia, conhecida por frequentar o Porto
Púrpura, então é melhor que você tenha um novo rosto também. -
Segurou-a pelo queixo, virou sua cabeça para um lado e para o outro,
e assentiu. - Um rosto bonito, desta vez, eu acho. Tão bonito quanto
seu próprio rosto. Quem é você, filhar
- Ninguém - ela
respondeu.
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