sexta-feira, 4 de outubro de 2013

65 - CERSEI


Na última noite em que esteve presa, a rainha não pôde dormir. Cada vez que fechava os olhos, sua cabeça se enchia com pressentimentos e fantasias a respeito do dia seguinte. Terei guardas, disse para si mesma. Eles manterão a multidão longe. Ninguém poderá tocar em mim. O Alto Pardal lhe prometera aquilo.
Mesmo assim, estava com medo. No dia em que Myrcella zarpara para Dome, o dia do motim dos pães, os mantos dourados estavam posicionados ao longo da rota da procissão, mas a multidão invadira para fazer o velho e gordo Alto Septão em pedaços e estuprar Lollys Stokeworth meia centena de vezes. Se aquela criatura pálida e estúpida podia incitar os animais estando completamente vestida, quanta luxúria uma rainha não inspiraria?
Cersei caminhou pela cela, inquieta como os leões encarcerados que viviam nas entranhas de Rochedo Casterly quando ainda era uma garota, um legado dos tempos de seu avô. Ela e Jaime costumavam desafiar um ao outro para subir na jaula, e uma vez ela conseguira reunir coragem suficiente para deslizar a mão entre duas barras e tocar um dos grandes animais amarelados. Sempre fora mais ousada que o irmão. O leão havia virado a cabeça para encará-la com imensos olhos dourados. Então, lambera seus dedos. Sua língua era áspera como uma lima, mas, mesmo assim, ela não tirou a mão, não até que Jaime a pegara pelos ombros e a puxara para longe da jaula.
- Sua vez - dissera para ele, depois. - Puxe a juba dele, desafio você. - Ele nunca puxou. Eu devia ter a espada, não ele.
Descalça e tremendo, ela andava de um lado para o outro com um fino cobertor sobre os ombros. Estava ansiosa pelo dia que viria. Até o anoitecer, tudo estaria acabado. Uma pequena caminhada e estarei em casa, estarei novamente com Tommen, em meus próprios aposentos dentro da Fortaleza de Maegor. Seu tio dissera que era a única maneira de se salvar. Seria, realmente? Não confiava no tio, não mais do que confiava nesse Alto Septão. Ainda posso me recusar. Ainda posso insistir na minha inocência e arriscar tudo em um julgamento.
Mas não ousava deixar a Fé a cargo de seu julgamento, como aquela Margaery Tyrell pretendia fazer. Aquilo podia servir bem o suficiente para a pequena rosa, mas Cersei tinha poucos amigos entre as septãs e os pardais ao redor do novo Alto Septão. Sua única esperança seria um julgamento por batalha e, para isso, precisava ter um campeão.
Se Jaime não tivesse perdido a mão ...
Aquele caminho não levaria a lugar nenhum, no entanto. A mão da espada de Jaime se fora, assim como ele, desaparecido com a mulher Brienne em algum lugar no Tridente. A rainha teria que encontrar outro defensor, ou a provação de hoje seria o menor de seus problemas. Seus inimigos a acusavam de alta traição. Ela tinha que chegar até Tommen, não importava quanto custasse. Ele me ama. Ele não rejeitará a própria mãe. Joff era teimoso e imprevisível, mas Tommen é um bom menino, um bom reizinho. Ele fará o que lhe for dito. Se permanecesse ali, estaria condenada, e o único jeito de voltar para a Fortaleza Vermelha era caminhando. O Alto Septão fora duro, e Sor Kevan se recusara a erguer um dedo contra ele.
- Nada de mal vai me acontecer hoje - Cersei disse, quando as primeiras luzes do dia roçaram sua janela. - Apenas meu orgulho sofrerá. - As palavras soaram vazias em seus ouvidos. Jaime ainda pode vir. Ela o imaginou cavalgando pela neblina da manhã, a armadura dourada brilhando na luz do sol que se erguia. Jaime, se você já me amou ...
Quando suas carcereiras vieram, Septã Unella, Septã Moelle e Septã Scolera lideravam a procissão. Com elas estavam quatro noviças e duas irmãs silenciosas. A visão das irmãs silenciosas em suas túnicas cinzentas encheu a rainha de um terror súbito. Por que estão aqui? Vou morrer? As irmãs silenciosas auxiliam os mortos.
- O Alto Septão prometeu que nada de mau me aconteceria.
- E nada acontecerá. - Septã Unella acenou para as noviças. Elas trouxeram sabão de lixívia, uma bacia com água morna, urna tesoura e uma longa navalha reta. A visão do aço fez um arrepio percorrer seu corpo. Elas pretendem cortar meu cabelo. Um pouco mais de humilhação, uma passa para meu mingau. Não lhes daria a satisfação de ouvi-la implorar. Sou Cersei da Casa Lannister, um leão do Rochedo, a verdadeira rainha dos Sete Reinos, filha legítima de Tywin Lannister. E cabelos crescem novamente.
- Vamos com isso - disse.
A mais velha das duas irmãs silenciosas pegou a tesoura. Uma barbeira experiente, sem dúvida; sua ordem frequentemente limpava os cadáveres dos nobres mortos antes de devolvê-los para os parentes, e aparar barbas e cortar cabelos era parte disso. Primeiro, a mulher descobriu a cabeça da rainha. Cersei sentou-se tão rígida quanto uma estátua de pedra, enquanto a tesoura trabalhava. Tufos de cabelo dourado caíam no chão. Ela não tivera permissão de mantê-lo devidamente penteado em sua cela, mas mesmo sem lavar e emaranhado, brilhava como se tivesse sido tocado pelo sol. Minha coroa, a rainha pensou. Eles tiraram a outra coroa de mim, e agora estão roubando esta também. Quando os cabelos e cachos empilharam-se ao redor de seus pés, uma das noviças ensaboou sua cabeça e a irmã silenciosa raspou o que restava com a navalha.
Cersei esperava que fosse o final daquilo, mas não.
- Tire a roupa, Vossa Graça - a Septã Unella ordenou.
- Aqui? - a rainha perguntou. - Por quê?
- Você deve ser tosquiada.
Tosquiada, ela pensou, como uma ovelha. Arrancou a túnica pela cabeça e a jogou ao chão.
- Façam o que têm que fazer.
Então, lá estava o sabão novamente, a água morna e a navalha. O cabelo embaixo dos braços veio em seguida, então as pernas, e por último o ouro fino que cobria seu monte. Quando a irmã silenciosa se arrastou entre suas pernas com a navalha, Cersei se pegou lembrando todas as vezes em que Jaime se ajoelhara onde ela estava ajoelhada agora, plantando beijos na parte de dentro das suas cochas, fazendo-a ficar molhada. Os beijos dele eram sempre quentes. A navalha era gelada.
Quando a ação estava acabada, ela estava tão nua e vulnerável quanto uma mulher poderia estar. Nem mesmo um fio de cabelo para me esconder atrás. Uma pequena risada explodiu de seus lábios, sombria e amarga.
- Vossa Graça acha isso divertido? - disse a Septã Scolera.
- Não, septã - falou Cersei. Mas um dia terei sua língua arrancada por uma pinça quente, e isso será hilário.
Uma das noviças trouxera uma túnica para ela, uma túnica de septã branca e macia para cobri-la enquanto fizesse o caminho pelos degraus da torre e através do septo, portanto, qualquer adorador com quem se encontrasse no meio do caminho seria poupado da visão de sua carne nua. Sete, salvem-nos a todos, que hipócritas eles são.
- Terei permissão para um par de sandálias? - ela perguntou. - As ruas estão imundas.
- Não tão imundas quanto seus pecados - disse a Septá Moelle. - Sua Alta Santidade ordenou que você se apresentasse como os deuses a fizeram. Você tinha sandálias nos pés quando saiu do útero da senhora sua mãe:
- Não, septã - a rainha foi obrigada a dizer.
- Então já tem sua resposta.
Um sino começou a soar. O longo aprisionamento da rainha estava no fim. Cersei puxou a túnica de encontro ao corpo, grata por seu calor, e disse:
- Vamos. - Seu filho a aguardava do outro lado da cidade. Quanto mais cedo saísse, mais cedo o veria.
A pedra áspera raspava as solas de seus pés, enquanto Cersei Lannister fazia sua descida. Viera ao Septo de Baelor como uma rainha, em uma liteira. Estava saindo careca e descalça. Mas estou saindo. Isso é tudo o que importa.
Os sinos da torre estavam tocando, convocando a cidade para testemunhar sua vergonha. O Grande Septo de Baelor estava lotado de fiéis vindos para os serviços do amanhecer, o som das orações ecoando pela cúpula sobre as cabeças, mas, quando a procissão da rainha apareceu, um súbito silêncio tomou conta do lugar e mil olhos se viraram para segui-la enquanto ela seguia pelo corredor, passando pelo lugar em que o senhor seu pai fora velado após ter sido assassinado. Cersei passou rapidamente por eles, não olhando nem para a direita nem para a esquerda. Seus pés descalços batiam contra o frio chão de mármore. Ela podia sentir os olhares. Atrás dos altares, os Sete pareciam observá-la também.
No Salão das Lamparinas, uma dúzia de Filhos do Guerreiro esperava sua chegada. Mantos arco-íris pendiam de suas costas, e os cristais que ornamentavam os grandes elmos brilhavam sob as luzes das lamparinas. As armaduras eram de placas de prata polidas até parecerem espelhos, mas por baixo, ela sabia, cada um deles usava um cilício. Seus escudos triangulares tinham o mesmo padrão: uma espada de cristal brilhando na escuridão, o antigo emblema daqueles que o povo chamava de Espadas.
O capitão deles se ajoelhou diante dela.
- Talvez Vossa Graça se recorde de mim. Sou Sor Theodan, o Fiel, e Sua Alta Santidade ordenou que eu a escoltasse. Meus irmãos e eu garantiremos sua segurança pela cidade.
O olhar de Cersei passou pelo rosto dos homens atrás dele. E lá estava ele: Lancel, seu primo, filho de Sor Kevan, que certa vez declarara amá-la, antes de decidir que amava mais os deuses. Meu sangue e meu traidor. Ela não o perdoaria.
- Pode se levantar, Sor Theodan. Estou pronta.
O cavaleiro levantou-se, virou-se e ergueu a mão. Dois de seus homens aproximaram-se das altas portas e as abriram, e Cersei atravessou-as até o ar livre, piscando sob a luz do sol como uma toupeira despertada de sua toca.
Um vento forte soprava e fazia a ponta da túnica se agarrar e ondular em suas pernas. O ar da manhã estava denso com os velhos e conhecidos fedores de Porto Real. Ela respirou o cheiro de vinho azedo, pão sendo assado, peixe podre e excrementos, fumaça, suor e mijo de cavalo. Nenhuma flor jamais cheirara tão bem. Encolhida em sua túnica, Cersei parou no topo dos degraus de mármore enquanto os Filhos do Guerreiro entravam em formação ao redor dela.
De repente, percebeu que já tinha estado naquele mesmo lugar, no dia em que Lorde Eddard Stark perdera a cabeça. Aquilo não era para ter acontecido. Joff devia ter poupado sua vida e o enviado para a Muralha. O filho mais velho de Stark o teria substituído como Senhor de Winterfell, mas Sansa teria ficado na corte, como refém. Varys e Mindinho tinham acertado os termos, e Ned Stark tinha engolido sua preciosa honra e confessado sua traição para salvar a cabecinha vazia da filha. Eu teria conseguido um bom casamento para Sansa. Um casamento Lannister. Não Joff, é claro, mas Lancel poderia servir, ou um de seus irmãos mais jovens. Petyr Baelish se oferecera para casar com a garota, ela se lembrou, mas é claro que era impossível, ele era de nascimento muito baixo. Se Joff simplesmente tivesse feito o que lhe foi dito, Winterfell jamais teria ido à guerra, e o pai teria lidado com os irmãos de Robert.
Em vez disso, Joff ordenara que a cabeça de Stark fosse cortada, e Lorde Slynt e Sor Ilyn Payne se apressaram em obedecer. Foi bem ali, a rainha se lembrou, olhando para o local. Janos Slynt erguera a cabeça de Ned Stark pelos cabelos, enquanto o sangue de sua vida escorria pelos degraus, e depois não havia como voltar atrás.
As lembranças pareciam tão distantes agora. Joffrey estava morto, e todos os filhos de Stark também. Até mesmo seu pai perecera. E, agora, ela estava nos degraus do Grande Septo novamente, só que dessa vez era ela quem a multidão estava olhando, não Eddard Stark.
A ampla praça de mármore embaixo estava tão lotada quanto no dia que Stark morrera. Por todos os lados, a rainha via olhos. A multidão parecia ter partes iguais de homens e mulheres. Alguns tinham crianças nos ombros. Mendigos e ladrões, taverneiros e comerciantes, curtidores, cavalariços e pantomimeiros, as prostitutas mais rampeiras, toda a escória saíra para ver a rainha humilhada. E, misturados a eles, estavam os Pobres Irmãos; criaturas sujas e barbudas, armadas com lanças e machados e vestidos com pedaços de placas amassadas, cotas de malha enferrujadas e couro rachado, sobre túnicas ásperas branqueadas e adornadas com a estrela de sete pontas da Fé. O exército esfarrapado do Alto Pardal.
Parte dela ainda esperava que Jaime aparecesse e a resgatasse dessa humilhação, mas seu irmão gêmeo estava em algum lugar desconhecido. Nem seu tio estava presente. Aquilo não a surpreendia. Sor Kevan tinha deixado seu ponto de vista claro durante a última visita; a vergonha dela não devia manchar a honra de Rochedo Casterly. Nenhum leão caminharia com ela hoje. Essa provação era dela, e apenas dela.
Septã Unella ficou à sua direita, Septã Moelle à sua esquerda, Septã Scolera atrás dela. Se a rainha fugisse ou se recusasse a continuar, as três bruxas a arrastariam para dentro e, dessa vez, se assegurariam de que nunca deixasse sua cela.
Cersei ergueu a cabeça. Além da praça, e do mar de olhos famintos, bocas escancaradas e rostos sujos, do outro lado da cidade, a Grande Colina de Aegon erguia-se a distância, as torres e as ameias da Fortaleza Vermelha parecendo rosadas sob a luz do sol que nascia. Não é tão longe. Uma vez que alcançasse os portões, o pior do seu sofrimento estaria terminado. Teria seu filho novamente. Teria seu campeão. Seu tio lhe prometera isso. Tommen está esperando por mim em casa. Meu reizinho. Eu posso fazer isso. Eu devo.
Septã Unella deu um passo à frente.
- Uma pecadora vem diante de vocês - declarou. - Ela é Cersei da Casa Lannister, rainha pelo casamento, mãe de Sua Graça o Rei Tommen, viúva de Sua Graça o Rei Robert, e cometeu graves falsidades e fornicações.
Septã Moelle moveu-se na direita da rainha.
- A pecadora confessou seus pecados e implorou por absolvição e perdão. Sua Alta Santidade ordenou que ela demonstrasse seu arrependimento colocando de lado todo o orgulho e os artifícios, apresentando-se como os deuses a fizeram diante do bom povo da cidade.
Septã Scolera completou.
- Então, agora, esta pecadora vem diante de vocês com o coração humilde, despojada de segredos e ocultações, nua diante dos olhos dos deuses e dos homens, para fazer sua caminhada de expiação.
Cersei tinha um ano de idade quando o avô morrera. A primeira coisa que o pai fizera em sua ascensão fora expulsar de Rochedo Casterly a amante gananciosa e de baixo nascimento de seu próprio pai. As sedas e os veludos que Lorde Tytos derramara sobre ela e as joias que ela tomara para si lhe foram tirados, e fora enviada nua para caminhar pelas ruas de Lannisporto, para que o oeste pudesse ver o que ela era.
Embora fosse jovem demais para testemunhar o espetáculo, Cersei ouvira a história se espalhando nas bocas das lavadeiras e dos guardas que estiveram ali. Falaram sobre como a mulher chorara e implorara, da forma desesperada que agarrara suas roupas quando lhe ordenaram que se despisse, dos esforços fúteis para cobrir os seios e o sexo com as mãos enquanto seguira mancando descalça e nua pelas ruas para o exílio.
- Antes ela era vaidosa e altaneira - ela lembrava um guarda falando - tão arrogante que poderia se pensar que esquecera que viera da sujeira. Uma vez que tiraram suas roupas, no entanto, ela era apenas outra prostituta.
Se Sor Kevan e o Alto Pardal pensavam que aconteceria o mesmo com ela, estavam muito enganados. O sangue de Lorde Tywin estava nela. Sou uma leoa. Não vou me assustar diante deles.
A rainha deslizou a túnica pelos ombros.
Ela se desnudou em um movimento suave e sem pressa, como se estivesse em seus próprios aposentos, tirando a roupa para o banho com ninguém além das aias observando. Quando o frio tocou sua pele, tremeu violentamente. Reuniu todas as suas forças para não tentar se cobrir com as mãos, como a puta de seu avô fizera. Os dedos se fecharam em punhos, as unhas penetrando na palma da mão. Estavam olhado para ela, todos os olhos famintos. Mas o que estavam vendo? Sou bonita, lembrou a si mesma. Quantas vezes Jaime lhe dissera aquilo? Mesmo Robert lhe dizia isso quando vinha bêbado para sua cama a fim de lhe prestar uma embriagada homenagem com seu pau.
Eles, no entanto, olharam para Ned Stark do mesmo jeito.
Tinha que se mexer. Nua, tosquiada, pés descalços, Cersei começou a descer lentamente pelos amplos degraus de mármore. Arrepios subiam pelos seus braços e pernas. Manteve o queixo erguido, como uma rainha deve fazer, e sua escolta se espalhou diante dela. Os Pobres Irmãos empurravam as pessoas para abrir caminho na multidão, enquanto as Espadas se posicionaram em cada lado dela. Septã Unella, Septã Scolera e Septã Moelle a seguiam. Atrás delas vinham as noviças vestidas de branco.
- Puta! - alguém gritou. Uma voz de mulher. Mulheres eram sempre as mais cruéis quando outra mulher estava em questão.
Cersei a ignorou. Haverá mais, e pior. Essas criaturas não têm alegria mais doce na vida do que zombar de seus superiores. Não podia silenciá-los, então devia fingir que não estava ouvindo. Não deveria olhar para eles também. Manteria os olhos na Grande Colina de Aegon, do outro lado da cidade, nas torres da Fortaleza Vermelha que resplandeciam sob a luz. Era onde encontraria a salvação, se o tio mantivesse sua parte na barganha.
Ele quis isso. Ele e o Alto Pardal. E a pequena rosa também, não duvido. Eu pequei e devo expiar, devo desfilar minha vergonha diante dos olhos de cada mendigo da cidade. Eles acham que isso quebrará meu orgulho, que acabará comigo, mas estão enganados.
Septã Unella e Septã Moelle caminhavam ao lado dela, enquanto Septã Scolera seguia atrás, tocando um sino.
- Vergonha - a velha bruxa dizia - vergonha sobre a pecadora, vergonha, vergonha.
De algum lugar à direita, outra voz cantava em contraponto à dela, algum menino vendedor de tortas gritando:
- Tortas de carne, três dinheiros, tortas quentinhas de carne, aqui.
O chão de mármore era frio e liso, e Cersei tinha que andar cuidadosamente, com medo de escorregar. O caminho os levou até a estátua de Baelor. o Abençoado, alto e sereno sobre seu pedestal, seu rosto um esboço cuidadoso de benevolência. Olhando para ele, não era possível imaginar o tolo que fora. A dinastia Targaryen produzira tanto reis ruins quanto bons, mas nenhum tão amado quanto Baelor, aquele piedoso e gentil rei-septão que amara o povo e os deuses em partes iguais e, mesmo assim, aprisionara as próprias irmãs. Era incrível que a estátua não desmoronasse à visão dos seios nus da rainha. Tyrion costumava dizer que o Rei Baelor ficava apavorado com o próprio pau. Certa vez, ela se lembrou, ele expulsara todas as putas de Porto Real. Rezava por elas enquanto eram levadas para fora dos muros da cidade, as histórias contavam, mas não olhara para elas.
- Prostituta - uma voz gritou. Outra mulher. Algo voou da multidão. Algum vegetal podre. Marrom e soltando líquido, passou por cima de sua cabeça para se espatifar nos pés de um dos Pobres Irmãos. Não estou com medo. Sou uma leoa. Continuou andando.
- Tortas quentes - o menino das tortas gritava. - Pegue sua torta quente aqui.
Septã Scolera tocava o sino, entoando:
- Vergonha, vergonha, vergonha sobre a pecadora, vergonha, vergonha.
Os Pobres Irmãos seguiam na frente, empurrando os homens com seus escudos, abrindo um caminho estreito. Cersei seguiu-os, a cabeça ereta, os olhos fixos e distantes. Cada passo deixava a Fortaleza Vermelha mais próxima. Cada passo a deixava mais perto do filho e da salvação.
Pareceu levar cem anos para cruzar a praça, mas finalmente o mármore deu lugar aos paralelepípedos sob seus pés, lojas, estábulos e casas fechadas ao redor deles, e começaram a descer a Colina de Visenya.
O percurso era mais lento ali. A rua era íngreme e estreita, a multidão se comprimia firmemente. Os Pobres Irmãos empurravam aqueles que bloqueavam o caminho, tentando movê-los para o lado, mas não havia para onde ir, e os que estavam na parte de trás da multidão eram levados para trás. Cersei tentava manter a cabeça erguida, mas pisou em algo liso e molhado que a fez escorregar. Teria caído, mas a Septã Unella a pegou pelo braço e a manteve em pé.
- Vossa Graça deve prestar atenção onde coloca os pés.
Cersei puxou o braço para se libertar.
- Sim, septã - disse, com uma voz mansa, embora estivesse com raiva suficiente para cuspir na mulher. A rainha continuou, vestida apenas com arrepios e orgulho. Olhou para a Fortaleza Vermelha, mas estava escondida agora, coberta ao seu olhar por altos prédios de madeira que se erguiam por todos os lados.
- Vergonha, vergonha - entoava Septã Scolera, seu sino tocando.
Cersei tentou andar mais rápido, mas logo se deparou com as costas das Estrelas, que seguiam diante dela, e teve que reduzir os passos novamente. Um homem diante deles estava vendendo carne assada no espeto em um carrinho, e a procissão parou enquanto os Pobres Irmãos o tiravam do caminho. A carne parecia suspeitosamente de rato aos olhos de Cersei, mas o cheiro enchia o ar, e metade dos homens ao redor deles traziam espetos na mão quando a rua ficou livre o suficiente para que ela pudesse retomar seu trajeto.
- Vossa Graça quer um pouco? - um dos homens gritou. Era um brutamontes forte, com olhos de porco, uma barriga enorme e uma barba negra desgrenhada que a fez se lembrar de Robert. Quando ela desviou o olhar com nojo, ele jogou o espeto nela. Acertou-a na perna e caiu na rua, e a carne meio cozida deixou uma mancha de gordura e sangue em sua coxa.
A gritaria parecia mais alta ali do que na praça, talvez porque a multidão estivesse muito mais próxima. “Puta” e “pecadora” eram os gritos mais comuns, mas “fode-irmão” “boceta” e “traidora” eram atirados para ela também, e uma ou outra vez ouvia alguém gritar por Stannis ou Margaery. Os paralelepípedos sob seus pés estavam sujos, e havia tão pouco espaço que a rainha não podia nem desviar das poças. Ninguém jamais morreu de um pé molhado, disse para si mesma. Queria acreditar que as poças eram apenas água da chuva, embora mijo de cavalo fosse o mais provável.
Mais lixo era jogado das janelas e dos balcões: frutas apodrecidas, baldes de cerveja, ovos que explodiam em um fedor sulfuroso quando estouravam no chão. Então alguém atirou um gato morto sobre os Pobres Irmãos e os Filhos do Guerreiro. A carcaça acertou os paralelepípedos com tanta força que se abriu, respingando as pernas dela com entranhas e larvas.
Cersei continuou. Sou cega e surda, e eles são vermes, disse para si mesma.
- Vergonha, vergonha - a septã entoava.
- Castanhas, castanhas assadas quentinhas - um vendedor ambulante gritava.
- Rainha Boceta - um bêbado pronunciou solenemente de um balcão acima deles, erguendo a caneca para ela em um brinde zombeteiro. - Salve as tetas reais!
Palavras são vento, Cersei pensou. Palavras não podem me ferir.
Na metade da descida da Colina de Visenya, a rainha caiu pela primeira vez, quando seu pé escorregou em algo que devia ser excremento. Quando a Septã Unella a levantou, seu joelho estava ralado e sangrando. Uma risada áspera veio do meio da multidão, e um homem se ofereceu para beijá-la para que se sentisse melhor. Cersei olhou para trás. Podia ver a grande cúpula e as sete torres de cristal do Grande Septo de Baelor, no alto da colina. Eu realmente caminhei tão pouco? Pior, cem vezes pior, perdera de vista a Fortaleza Vermelha.
- Onde... onde ... ?
- Vossa Graça. - O capitão da escolta foi até ela. Cersei havia esquecido o nome dele. - Você deve continuar. A multidão está ficando mais rebelde.
Sim, ela pensou. Rebelde.
- Não tenho medo ...
- Deveria ter. - Ele puxou-a pelo braço, colocando-a ao seu lado.
Ela cambaleou colina abaixo - para baixo, sempre para baixo - estremecendo a cada passo, deixando que ele a apoiasse. Devia ser Jaime ao meu lado. Ele desembainharia sua espada dourada e abriria caminho pela multidão, arrancando os olhos das cabeças de todo homem que ousasse olhar para ela.
As pedras do pavimento eram rachadas e irregulares, escorregadias e ásperas contra seus pés suaves. Seu calcanhar tocou em alguma coisa afiada, uma pedra ou um pedaço de louça quebrada. Cersei gritou de dor.
- Eu pedi sandálias - cuspiu para Septã Unella. - Vocês podiam ter me dado sandálias, podiam ter feito isso.
O cavaleiro agarrou seu braço novamente, como se ela fosse uma serviçal qualquer. Ele se esqueceu de quem eu sou? Era a rainha de Westeros; ele não tinha o direito de colocar as mãos rudes sobre ela.
Na parte de baixo da colina, a encosta ficou mais suave e a rua começou a alargar. Cersei pôde ver a Fortaleza Vermelha novamente, brilhando carmesim ao sol da manhã no topo da grande colina de Aegon. Preciso continuar andando. Libertou-se das mãos de Sor Theodan.
- Não precisa me arrastar, Sor. - Ela mancava, deixando um rastro de pegadas sangrentas nas pedras atrás de si.
Caminhou pela lama e pelo esterco, sangrando, sentindo arrepios, cambaleando. Ao redor dela, um tagarelar sem fim.
- Minha esposa tem tetas melhores do que essas - um homem gritou.
Um cocheiro amaldiçoava enquanto os Pobres Irmãos ordenavam que sua carroça saísse do caminho.
- Vergonha, vergonha, vergonha da pecadora - entoavam as septãs.
- Olhem para esta aqui - uma puta falou da janela de um bordel, levantando a saia para os homens lá embaixo - não teve metade dos paus que essa aí.
Sinos tocavam, tocavam, tocavam.
- Essa não pode ser a rainha - um menino disse - ela é flácida como minha mãe.
Essa é minha penitência, Cersei disse para si mesma. Pequei muito gravemente, essa é minha expiação. Acabará logo, ficará para trás, então poderei esquecer.
A rainha começou a ver rostos familiares. Um homem careca com costeletas grossas franziu o cenho em uma janela como seu pai faria e, por um instante, ele se pareceu tanto com Lorde Tywin que ela tropeçou. Uma jovem estava sentada ao lado de uma fome, molhando-se com a água que espirrava, e a encarou com os olhos acusadores de Melara Hetherspoon. Viu Ned Stark e, ao lado dele, a pequena Sansa com seu cabelo ruivo e um cão cinza felpudo que devia ser sua loba. Cada criança se contorcendo no meio da multidão se tornou seu irmão Tyrion, escarnecendo dela como ele fizera quando Joffrey morreu. E ali estava Joffrey também, seu filho, seu primogênito, seu belo menino com cachos dourados e sorriso doce, ele tinha lábios tão adoráveis, ele ...
Foi quando ela caiu pela segunda vez.
Estava tremendo como uma folha quando a colocaram em pé.
- Por favor - disse. - Mãe, tenha misericórdia. Eu confessei.
- Você confessou - disse Septã Moelle. - Esta é sua expiação.
- Não falta muito - falou Septã Unella. - Vê? - apontou. - Até o alto da colina, e é tudo.
Até o alto da colina. E é tudo. Era verdade. Estavam aos pés da Grande Colina de Aegon, o castelo acima deles.
- Puta - alguém gritou.
- Fode-irmão - outra voz completou. - Abominação.
- Quer dar uma chupada aqui, Vossa Graça? - um homem com um avental de açougueiro agarrou o pau pelo calção, rindo. Não importava. Ela estava quase em casa.
Cersei começou a subida.
De algum modo, as vaias e os gritos eram mais grosseiros ali. Sua caminhada não a havia levado até a Baixada das Pulgas, então seus habitantes tinham se reunido nas encostas mais baixas da Grande Colina de Aegon para ver o espetáculo. Seus rostos maliciosos, vistos por detrás dos escudos e das lanças dos Pobres Irmãos, pareciam distorcidos, monstruosos, medonhos. Porcos e crianças nuas estavam em todos os lugares, mendigos aleijados e batedores de carteiras fervilhavam como baratas entre a aglomeração de pessoas. Ela viu homens cujos dentes haviam sido afiados em pontas, velhas com bócio tão grande quanto a cabeça, uma puta com uma imensa cobra listrada sobre os seios e os ombros, um homem com o queixo e as bochechas cobertos com feridas abertas que vazavam pus cinza. Sorriam, lambiam os lábios e vaiavam enquanto ela passava mancando por eles, os seios arfando com o esforço da subida. Alguns gritavam propostas obscenas, outros, insultos. Palavras são vento, ela pensou, palavras não podem me ferir. Sou bonita, a mais bela mulher de toda Westeros, Jaime diz isso, Jaime nunca mentiria para mim. Mesmo Robert, Robert nunca me amou, mas ele via que eu era bonita, ele me queria.
Mas não se sentia bonita. Ela se sentia velha, usada, suja, feia. Havia estrias em sua barriga das crianças que parira, e os seios não eram mais tão firmes quanto eram quando era mais jovem. Sem um vestido para mantê-los, cediam contra seu peito. Eu não devia ter feito isso. Eu era a rainha deles, mas agora eles viram, eles viram, eles viram. Eu nunca deveria tê-los deixado ver. Vestida e coroada, ela era uma rainha. Nua, sangrando, mancando, era apenas uma mulher, não muito diferente das esposas deles, mais parecidas com suas mães do que com suas belas filhinhas donzelas. O que eu fiz?
Havia algo em seus olhos, ardendo, borrando a visão. Não podia chorar, não podia chorar, os vermes não deviam vê-la chorando. Cersei esfregou os olhos com as palmas das mãos. Uma rajada de vento frio a fez tremer violentamente.
E repentinamente a bruxa estava ali, parada na multidão, suas tetas penduradas e a pele cheia de verrugas esverdeadas, maldosa como os demais, com a malícia brilhando nos duros olhos amarelos.
- Rainha você será - ela sibilou - até que venha outra, mais jovem e mais bonita, para derrubar você e tomar tudo o que lhe é mais caro.
E então não foi mais possível segurar as lágrimas. Elas queimavam pelas bochechas da rainha como ácido. Cersei deu um grito agudo, cobriu os mamilos com um braço, deslizou a outra mão para esconder sua fenda e começou a correr, forçando o caminho pela fileira de Pobres Irmãos, abaixando-se enquanto se arrastava colina acima. No meio do caminho, tropeçou e caiu, ergueu-se, então caiu novamente dez metros adiante. A próxima coisa que soube é que estava rastejando, correndo para cima de quatro, como um cão, enquanto a boa gente de Porto Real abria caminho para ela, rindo, zombando e aplaudindo.
Então a multidão ficou para trás e pareceu se dissolver, e lá estavam os portões do castelo diante dela, e uma fileira de lanceiros em brilhantes meios-elmos e mantos carmesins. Cersei ouviu o som rude e familiar de seu tio rosnando ordens, e viu um clarão branco de ambos os lados enquanto Sor Boros Blount e Sor Meryn Trant caminhavam na direção dela com armaduras claras e mantos nevados.
- Meu filho - ela gritou. - Onde está meu filho? Onde está Tommen?
- Não está aqui. Nenhum filho deve testemunhar a vergonha da mãe. - A voz de Sor Kevan era dura. - Cubram-na.
Então Jocelyn estava debruçada sobre ela, enrolando-a em um cobertor de lã verde, macio e limpo, que cobria sua nudez. Uma sombra caiu sobre ambas, cobrindo o sol. A rainha sentiu o aço frio deslizar sob seu corpo, um par de grandes braços blindados erguendo-a do chão, levantando-a no ar tão facilmente quanto ela erguia Joffrey quando ele ainda era um bebê. Um gigante, Cersei pensou, tonta, enquanto ele a levava com passos largos em direção à entrada da Fortaleza. Ouvira que gigantes ainda podiam ser encontrados na natureza sem deuses além da Muralha. Isso é só uma história. Estou sonhando?
Não. Seu salvador era real. Dois metros e meio de altura, talvez mais, com pernas tão grossas quanto árvores, tinha um peito digno de um cavalo de arado e ombros que não desonrariam um boi. Sua armadura era de chapa de aço, esmaltada branca e brilhante como as esperanças de uma donzela e, sobre ela, uma cota de malha dourada. Um grande elmo cobria seu rosto. Do alto de sua cabeça saíam sete plumas sedosas nas cores do arco-íris da Fé. Um par de estrelas de sete pontas douradas prendiam seu manto esvoaçante nos ombros.
Um manto branco.
Sor Kevan mantivera sua parte na barganha. Tommen, seu precioso menininho, nomeara seu campeão para a Guarda Real.
Cersei nunca soube de onde Qyburn veio, mas de repente ele estava ao lado deles, lutando para acompanhar os largos passos de seu campeão.
- Vossa Graça - disse - é bom tê-la de volta. Posso ter a honra de lhe apresentar nosso mais novo membro da Guarda Real? Este é Sor Robert Forte.
- Sor Robert - Cersei murmurou, enquanto entravam pelos portões.
- Para o agrado de Vossa Graça, Sor Robert fez o sagrado voto do silêncio - Qyburn falou. - Jurou que não falará até que todos os inimigos de Sua Graça estejam mortos e o mal seja expulso do reino.
Sim, pensou Cersei Lannister. Oh, sim. 

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