sexta-feira, 4 de outubro de 2013

66 - TYRION


A pilha de pergaminhos estava formidavelmente alta. Tyrion olhou para ela e suspirou.
- Eu tinha entendido que vocês eram um bando de irmãos. Esse é o amor que um irmão nutre pelo outro? Onde está a confiança? A amizade, o respeito carinhoso, a profunda afeição que apenas homens que lutam e sangram juntos são capazes de conhecer?
- Tudo a seu tempo - disse Ben Mulato Plumm.
- Depois que você assinar - disse Tinteiros, afinando uma pena.
Kasporio, o Astuto, tocou no cabo da espada.
- Se quiser começar a sangrar agora, ficarei feliz em lhe proporcionar isso.
- É muita gentileza sua oferecer isso - disse Tyrion. - Mas acho que não.
Tinteiros colocou os pergaminhos diante dele e lhe estendeu a pena.
- Aqui está sua tinta. Esta é da Antiga Volantis. Dura tanto quanto as tintas negras dos meistres. Tudo o que precisa fazer é assinar e passar as notas para mim. Eu farei o resto.
Tyrion deu um sorriso torto.
- Posso ler primeiro?
- Se quiser. São todas iguais, de modo geral. Exceto as que estão no fundo, mas chegaremos nelas no devido tempo,
Oh, estou certo que sim. Para a maioria dos homens, não havia custo para se juntar a uma companhia, mas ele não era a maioria dos homens. Mergulhou a pena no pote de tinta, inclinou-se sobre o primeiro pergaminho, parou e olhou para cima.
- Vocês preferem que eu assine Yollo ou Hugor Hill?
Ben Mulato apertou os olhos.
- Você prefere voltar para os herdeiros de Yezzan ou apenas ser decapitado?
O anão riu e assinou o pergaminho, Tyrion da Casa Lannister. Passou o documento para Tinteiros e folheou a pilha que restava.
- Aqui há... o quê? Cinquenta? Sessenta? Pensei que eram quinhentos Segundos Filhos.
- Quinhentos e treze no presente - Tinteiros disse. - Quando você assinar nosso livro, seremos quinhentos e quatorze.
- Apenas um em cada dez recebe uma nota? Isso dificilmente parece justo. Pensei que vocês das companhias livres eram do tipo que divide tudo igualmente. - Assinou outra folha.
Ben Mulato riu.
- Oh, tudo dividido. Mas não igualmente. Os Segundos Filhos não são diferentes de uma família ...
- ... e toda família tem primos babões. - Tyrion assinou outra nota. O pergaminho enrugado crepitou quando o passou para o tesoureiro. - Há celas dentro das entranhas de Rochedo Casterly onde o senhor meu pai mantinha os piores dos nossos. - Mergulhou a pena no pote de tinta. Tyrion da Casa Lannister, rabiscou, prometendo pagar ao portador da nota cem dragões de ouro. Cada movimento da pena me deixa um pouco mais pobre ... ou deixaria, se eu não fosse um pedinte, para começar. Um dia, poderia se arrepender dessas assinaturas. Mas não hoje. Soprou a tinta molhada, passou o pergaminho para o tesoureiro e assinou outro que estava embaixo. E novamente. E novamente. E novamente. - Isso me fere profundamente, devo dizer - disse, entre uma assinatura e outra. - Em Westeros, a palavra de um Lannister é considerada tão boa quanto ouro.
Tinteiros deu de ombros.
- Não estamos em Westeros. Neste lado do mar estreito, colocamos nossas promessas no papel. - Em cada folha que lhe era passada, ele jogava uma fina camada de areia na assinatura para absorver o excesso de tinta, sacudia e colocava de lado. - Dívidas escritas no vento tendem a ser... esquecidas, podemos dizer?
- Não por nós. - Tyrion assinou outra folha. E outra. Encontrara um ritmo, agora. - Um Lannister sempre paga suas dívidas.
Plumm riu.
- Sim, mas a palavra de um mercenário é sem valor.
Bem, a sua é, pensou Tyrion, e graças aos deuses por isso.
- É verdade, mas não serei um mercenário até assinar seu livro.
- Em breve - disse Ben Mulato. - Depois das notas.
- Estou dançando o mais rápido que posso. - Queria rir, mas isso teria arruinado o jogo. Plumm estava gostando daquilo, e Tyrion não tinha nenhuma intenção de tirar sua diversão. Deixe-o pensar que está se deitando sobre mim e comendo meu cu, e comprarei espadas de aço com dragões de pergaminho. Se alguma vez voltasse para Westeros para reivindicar seu direito de nascimento, teria todo o ouro de Rochedo Casterly para cumprir suas promessas. Se não, bem, estaria morto, e seus novos irmãos podiam limpar a bunda com os pergaminhos. Talvez alguns deles fossem para Porto Real carregando seus rabiscos, na esperança de convencer sua doce irmã a pagá-los. E eu gostaria de ser uma barata para testemunhar isso.
O texto nos pergaminhos mudou da metade da pilha para baixo. As notas de cem dragões eram todas para oficiais. De repente, as quantias ficavam maiores. Agora Tyrion prometia pagar ao portador mil dragões de ouro. Abanou a cabeça, riu, assinou. E novamente. E novamente.
- Então - disse, enquanto rabiscava - quais serão meus deveres com a companhia?
- Você é feio demais para ser michê de Bokkoko - disse Kasperio - mas pode ser aparador de seta.
- Sou melhor do que você imagina - disse Tyrion, recusando-se a morder a isca. - Um homem pequeno com um grande escudo deixará os arqueiros loucos. Um homem mais sábio do que você me disse isso certa vez.
- Você trabalhará com Tinteiros - disse Ben Mulato Plumm.
- Você trabalhará para Tinteiros - corrigiu Tinteiros. - Manter os livros, contar moedas, escrever contratos e cartas.
- Com prazer - falou Tyrion. - Amo livros.
- O que mais você faria? - escarneceu Kasporio. - Olhe para você. Não é feito para a batalha.
- Certa vez fiquei encarregado de todos os drenos de Rochedo Casterly - Tyrion disse suavemente. - Alguns deles estavam parados havia anos, mas logo os fiz drenarem alegremente. - Mergulhou a pena na tinta novamente. Outra dúzia de notas, e estava acabado. - Talvez eu possa supervisionar suas seguidoras de acampamento. Não podemos ter os homens parados sobre elas, podemos?
Aquela brincadeira não agradou Ben Mulato.
- Fique longe das putas - avisou. - A maioria delas tem sífilis, e elas falam. Você não é o primeiro escravo fugido a se juntar à companhia, mas isso não significa que precisamos alardear sua presença. Não quero você desfilando por onde possa ser visto. Fique aqui dentro o máximo que puder, e cague em seu balde. Há muitos olhos nas latrinas. E nunca vá além do nosso acampamento sem a minha permissão. Podemos vestir você com aço de escudeiro e fingir que é o michê de Jorah, mas alguns verão a verdade. Uma vez que tomemos Meereen e estejamos longe, em Westeros, você pode se empinar todo em ouro e carmesim. Até lá, no entanto ...
- ... devo viver sob uma rocha e nunca fazer um som. Tem minha palavra nisso. - Tyrion da Casa Lannister, assinou mais uma vez, com um floreio. Era o último pergaminho. Restavam três notas, diferentes das demais. Duas estavam escritas em pergaminho fino e eram nominais. Para Kasporio, o Astuto, dez mil dragões. O mesmo para Tinteiros, cujo nome verdadeiro parecia ser Tybero Istarion. - Tybero? - disse Tyrion. - Soa quase como Lannister. Você é algum tipo de primo há muito perdido?
- Talvez. Sempre pago minhas dívidas também. É o que se espera de um tesoureiro. Assine.
Ele assinou.
A nota de Ben Mulato era a última. Aquela fora inscrita sobre um rolo de pele de cordeiro. Cem mil dragões de ouro, seis mil acres de terra fértil, um castelo e uma senhoria. Muito bem. Esse Plumm não vem barato. Tyrion mexeu em sua cicatriz e se perguntou se devia fazer um espetáculo de indignação. Quando alguém fode um homem, espera um grito ou dois. Podia amaldiçoar, jurar e exaltar o roubo, recusar-se a assinar por um momento, então ceder relutantemente, protestando todo o tempo. Mas estava cansado da encenação, então, em vez disso, riu, assinou e deu o rolo para Ben Mulato.
- Seu pau é tão grande quanto reza a lenda - disse. - Considere-me bem e realmente fodido, Lorde Plumm.
Ben Mulato assoprou a assinatura.
- O prazer é meu, Duende. E agora, faremos você um dos nossos. Tinteiros, pegue o livro.
O livro era encadernado em couro, com dobradiças de ferro, e grande o suficiente para que se pudesse cear sobre ele. Dentro das pesadas placas de madeira estavam nomes e datas que remontavam mais de um século.
- Os Segundos Filhos estão entre as mais antigas companhias livres - Tinteiros disse, enquanto virava as páginas. - Este é o quarto livro. O nome de cada homem que serviu conosco está escrito aqui. Quando se juntaram a nós, onde lutaram, quanto tempo serviram, como foram suas mortes - tudo no livro. Você encontrará nomes famosos aqui, alguns dos seus Sete Reinos. Aegor Rivers serviu um ano conosco, antes de nos deixar para fundar a Companhia Dourada. Açoamargo, vocês o chamam. O Príncipe Brilhante, Aerion Targaryen, foi um Segundo Filho. E Rodrik Stark, o Lobo Andarilho, também. Não, não com essa tinta. Aqui, use essa. - Destampou um novo pote e o deu ao anão.
Tyrion inclinou a cabeça.
- Tinta vermelha?
- Uma tradição da companhia - Tinteiros explicou. - Houve um tempo em que cada novo homem escrevia seu nome com o próprio sangue, mas acontece que sangue dá uma tinta muito pobre.
- Os Lannister amam tradições. Empreste-me sua faca.
Tinteiros ergueu uma sobrancelha, deu de ombros, tirou a adaga da bainha e a deu pelo cabo. Ainda dói, Meiomeistre, muito obrigado, pensou Tyrion enquanto furava a ponta do polegar. Apertou uma gorda gota de sangue no pote de tinta, trocou a adaga por uma pena nova e rabiscou, Tyrion da Casa Lannister, Senhor de Rochedo Casterly, em uma grande letra de mão, bem abaixo da assinatura bem mais modesta de Jorah Mormont.
E está feito. O anão balançou para trás no banco de acampamento.
- É tudo o que exigem de mim? Não preciso fazer um juramento? Matar um bebê? Chupar o pau do capitão?
- Chupe o que quiser. - Tinteiros virou o livro e salpicou a página com um pouco de areia fina. - Para a maioria de nós, a assinatura é suficiente, mas eu odiaria desapontar um novo irmão em armas. Bem-vindo aos Segundos Filhos. Lorde Tyrion.
Lorde Tyrion. O anão gostou do som daquilo. Os Segundos Filhos podiam não desfrutar da reputação brilhante da Companhia Dourada, mas haviam conquistado algumas vitórias famosas através dos séculos.
- Outros senhores já serviram com a companhia?
- Senhores sem terras - disse Ren Mulato. - Como você, Duende.
Tyrion saltou do banco.
- Meus irmãos anteriores foram completamente insatisfatórios. Espero mais dos novos. Agora, como faço para conseguir armas e uma armadura?
- Quer um porco para cavalgar também? - perguntou Kasporio.
- Ora, não sabia que sua esposa estava na companhia - disse Tyrion. - E muita gentileza sua oferecê-la, mas prefiro um cavalo.
O espadachim corou, mas Tinteiros gargalhou alto e Ben Mulato chegou a rir.
- Tinteiros, mostre-lhe os carroções. Ele pode escolher entre o aço da companhia. A garota também. Coloque um elmo nela, um pouco de cota de malha, e talvez alguns a tomem por um garoto.
- Lorde Tyrion, comigo. - Tinteiros segurou a porta de lona para deixá-lo bambolear para fora. - Pedirei para Bocados levar vocês até os carroções. Pegue sua mulher e encontre com ele na tenda da cozinha.
- Ela não é minha mulher. Talvez queira ficar com ela. Tudo o que faz ultimamente é dormir e me olhar fixamente.
- Você precisa bater nela com mais força e fodê-la com mais frequência - o tesoureiro sugeriu amavelmente. - Leve-a, deixe-a, como queira. Bocados não vai se importar. Venha me encontrar quando estiver com sua armadura, e iniciarei você nos livros.
- Como quiser.
Tyrion encontrou Merreca dormindo no canto de sua tenda, em um fino colchão de palha, sob uma pilha de roupas de cama sujas. Quando a tocou com a ponta da bota, ela virou, piscou para ele e bocejou.
- Hugor? O que é?
- Estamos falando de novo? - Era melhor do que seu silêncio mal-humorado. Tudo por causa de um cão e um porco abandonados. Salvei nós dois da escravidão, imagina-se que um pouco de gratidão seja adequado. - Se dormir mais tempo, vai perder a guerra.
- Estou triste. - Ela bocejou novamente. - Estou cansada. Tão cansada.
Cansada ou doente? Tyrion se ajoelhou diante do colchão dela.
- Você parece pálida. - Ele sentiu sua testa. Está quente aqui, ou ela está com um pouco de febre? Não ousava fazer a pergunta em voz alta. Mesmo homens duros como os Segundos Filhos morriam de medo de montar a égua descorada. Se pensassem que Merreca estava doente, eles a expulsariam sem um momento de hesitação. Podem até nos devolver para os herdeiros de Yezzan, com notas ou sem notas. - Eu assinei o livro deles. Do jeito antigo, com sangue. Sou agora um Segundo Filho.
Merreca sentou-se, esfregando o sono dos olhos.
- E eu? Posso assinar também?
- Acho que não. Algumas companhias livres são conhecidas por aceitar mulheres, mas ... bem, eles não são as Segundas Filhas, afinal de contas.
- Nós - ela o corrigiu. - Se você é um deles, deve dizer nós, não eles. Alguém viu Porca Bonita? Tinteiros disse que perguntaria por ela. Ou Triturador, tem alguma notícia do Triturador?
Apenas se acreditar em Kasporio. O não-tão-astuto-segundo-em-comando de Plumm afirmava que três apanhadores de escravos estavam rondando pelo acampamento, perguntando por um par de anãos fugitivos. Um deles levava uma lança alta com uma cabeça de cachorro empalada na ponta, pelo que Kaspo dissera. Tais notícias não tirariam Merreca da cama, no entanto.
- Nada, ainda - mentiu. - Venha. Precisamos encontrar uma armadura para você.
Ela lhe deu um olhar cauteloso.
- Armadura? Por quê?
- Por algo que meu velho mestre em armas me falava. “Nunca vá para a batalha despido, rapaz”, ele dizia. Sigo suas palavras. Além disso, agora que sou um mercenário, eu realmente devo ter uma espada para vender. - Ela ainda não mostrava sinais de que ia se mexer. Tyrion a pegou pelo pulso, a colocou em pé e jogou um punhado de roupas em seu rosto. - Vista-se. Use o manto com o capuz e mantenha a cabeça baixa. Supostamente somos um par de rapazes, para o caso dos apanhadores de escravos estarem observando.
Bocados estava esperando na tenda da cozinha, mastigando folhamarga quando os dois anões chegaram, cobertos com os mantos e encapuzados.
- Ouvi dizer que vocês dois vão lutar conosco - o oficial disse. - Eles devem estar mijando nas calças em Meereen. Algum de vocês já matou um homem?
- Eu já - disse Tyrion. - Eu os golpeei como moscas.
- Como quê?
- Um machado, uma adaga, de preferência. Embora seja mais mortal com minha besta.
Bocados coçou a barba por fazer com a ponta de seu gancho.
- Coisa desagradável, uma besta. Quantos homens você matou com isso?
- Nove. - Seu pai valia pelo menos por esse tanto, certamente. Senhor de Rochedo Casterly, Protetor do Oeste, Escudo de Lannisporto, Mão do Rei, marido, irmão, pai, pai, pai.
- Nove. - Bocados bufou e cuspiu um bocado de gosma vermelha. Talvez tivesse apontado para os pés de Tyrion, mas acertou seu joelho. Claramente era o que pensava sobre “nove”. Os dedos do oficial estavam manchados de vermelho do suco da folhamarga que mastigava. Levou dois até a boca e assobiou. - Kem! Venha aqui, seu pote de mijo da porra. - Kem veio correndo. - Leve o Senhor e a Senhora Duende até os carroções e peça para Martelo arrumar-lhes algum aço da companhia.
- Martelo deve estar desmaiado de bêbado - Kem avisou.
- Mije na cara dele. Isso o acordará. - Bocados se virou para Tyrion e Merreca. - Nunca tivemos nenhum maldito anão antes, mas garotos nunca nos faltaram. Filhos dessa puta ou daquela, pequenos tolos fugidos de casa em busca de aventuras, michês, escudeiros e tipos assim. Algumas das merdas deles podem ser pequenas o bastante para caber em duendes. É a porra que usavam quando morreram, provavelmente, mas sei que isso não vai incomodar fodidos ferozes como vocês dois. Nove, é isso? - Balançou a cabeça e se afastou.
Os Segundos Filhos mantinham as armaduras da companhia em seis grandes carroções colocados perto do meio do acampamento. Kem mostrou o caminho, balançando a lança como se fosse um bastão.
- Como um rapaz de Porto Real termina em uma companhia livre? - Tyrion perguntou para ele.
O rapaz lhe deu um olhar de soslaio desconfiado.
- Quem disse para você que sou de Porto Real?
- Ninguém. - Cada palavra que sai da sua boca fede à Baixada das Pulgas. - Sua inteligência o denuncia. Não há ninguém mais esperto do que alguém de Porto Real, dizem.
Aquilo pareceu sobressaltá-lo.
- Quem diz isso?
- Todo mundo. - Eu.
- Desde quando?
Desde que eu inventei.
- Há muito tempo - mentiu. - Meu pai costumava dizer isso. Você conhece Lorde Tywin, Kem?
- A Mão. Uma vez eu o vi cavalgando pela colina. Seus homens tinham mantos vermelhos e pequenos leões nos elmos. Gostei daqueles elmos. - Sua boca se apertou. - Nunca gostei da Mão, no entanto. Ele saqueou a cidade. E então nos esmagou no Água Negra.
- Você estava lá?
- Com Stannis. Lorde Tywin chegou com o fantasma de Renly e nos acertou pelo flanco. Larguei minha lança e corri, mas aquele maldito cavaleiro nos navios disse: “Onde está sua lança, garoto? Não temos espaço para covardes”, e me deixaram lá, e milhares além de mim. Mais tarde ouvi dizer que seu pai estava mandando eles para lutar contra Stannis na Muralha, então atravessei o mar estreito e me juntei aos Segundos Filhos.
- Sente falta de Porto Real?
- Um pouco. Sinto falta de um garoto, ele... ele era meu amigo. E do meu irmão, Kennet, mas ele morreu na ponte dos navios.
- Muitos homens bons morreram naquele dia. - A cicatriz de Tyrion coçava ferozmente. Ele a cutucou com a unha.
- Sinto falta da comida, também - Kem falou, melancolicamente.
- Da comida da sua mãe?
- Os ratos não comeriam a comida da minha mãe. Mas tinha uma loja de ensopados. Ninguém fazia uma tigela de sopa marrom como eles. Tão grossa que você podia colocar a colher de pé na tigela, com pedaços disso e daquilo. Já provou uma tigela de sopa marrom, Meio- Homem?
- Uma vez ou duas. Ensopado de cantor, eu a chamava.
- Por quê?
- Era tão boa que me fazia querer cantar.
Kem gostou daquilo.
- Ensopado de cantor. Pedirei assim, da próxima vez que voltar para a Baixada das Pulgas. Do que você sente falta, Meio-Homem?
De Jaime, pensou Tyrion. De Shae. De Tysha. Da minha esposa, sinto falta da minha esposa, da esposa que mal conheci.
- Vinho, putas e riqueza - respondeu. - Especialmente da riqueza. A riqueza compra vinho e putas. - E também compra espadas, e os Kems para manejá-las.
- É verdade que as latrinas de Rochedo Casterly são feitas de ouro maciço? - Kem perguntou para ele.
- Você não devia acreditar em tudo o que ouve. Especialmente quando a Casa Lannister está em questão.
- Dizem que todos os Lannister são serpentes sinuosas.
- Serpentes? - Tyrion riu. - Este som que você ouviu é o senhor meu pai se revirando no túmulo. Somos leões, como alguns de nós gostam de dizer. Mas não faz diferença, Kem. Tropece em uma serpente ou no rabo de um leão, e você acaba morto do mesmo jeito.
Chegaram ao assim chamado arsenal, tal como era. O ferreiro, o lendário Martelo, mostrou ser um estranho brutamontes, com o braço esquerdo duas vezes mais grosso do que o direito.
- Ele fica bêbado com frequência - Kem falou. - Ben Mulato deixa quieto, mas um dia teremos um armeiro de verdade.
O aprendiz de Martelo era um jovem magro de cabelos vermelhos, chamado Prego. É claro. O que mais? Divertiu-se Tyrion. Martelo estava dormindo de bêbado quando alcançaram a forja, exatamente como Kem profetizara, mas Prego não tinha objeção de que os dois anões subissem nos carroções.
- Ferro porcaria, a maior parte - o rapaz avisou - mas podem pegar o que quiserem.
Sob teto de madeira inclinada e couro esticado, a base dos carroções tinha armas e armaduras antigas amontoadas. Tyrion deu uma olhada e suspirou, lembrando as reluzentes prateleiras de espadas, lanças e alabardas no arsenal dos Lannister, sob Rochedo Casterly.
- Isso vai levar um tempo - declarou.
- Há som de aço aqui, se puder encontrá-lo - uma voz profunda resmungou. - Nenhum deles é bonito, mas parará uma espada.
Um grande cavaleiro veio do fundo de um carroção, vestido da cabeça aos pés em aço da companhia. Sua greva esquerda não combinava com a direita, o gorjal estava salpicado de ferrugem, seus braços ricos e ornamentados, incrustados com flores de nielo. A mão direita tinha uma luva de placas de ferro, na esquerda uma luva sem dedos de cota de malha enferrujada. Os mamilos de sua musculosa placa peitoral tinham um par de anéis de ferro. O grande elmo ostentava chifres de carneiro, um dos quais estava quebrado.
Quando o tirou, revelou o rosto espancado de Jorah Mormont.
Ele parece um mercenário dos pés a cabeça, e não a coisa meio quebrada que pegamos da jaula de Yezzan, Tyrion refletiu. A maioria dos hematomas estava sumindo, e o inchaço em seu rosto tinha abrandado em grande parte, então Mormont parecia quase humano mais uma vez ... embora apenas vagamente parecesse consigo mesmo. A máscara de demônio que os traficantes de escravos haviam queimado em sua bochecha direita para marcá-lo como perigoso e desobediente nunca o deixaria. Sor Jorah nunca fora o que alguém poderia chamar de um homem gracioso. A marca havia transformado seu rosto em algo assustador.
Tyrion riu.
- Enquanto eu parecer mais bonito do que você, estarei feliz. - Virou-se para Merreca. - Você fica com aquele carroção. Começarei com este aqui.
- Será mais rápido se olharmos juntos. - Ela pegou um meio-elmo de ferro enferrujado, deu uma risadinha e enfiou-o na cabeça. - Pareço temível?
Você parece uma pantomimeira com um penico na cabeça.
- Isso é um meio-elmo. Você quer um grande elmo. - Encontrou um e trocou o meio-elmo por ele.
- E muito grande. - A voz de Merreca ecoou cavernosa dentro do aço. - Não posso olhar para fora. - Ela tirou o elmo e o jogou de lado. - O que tem de errado com o meio-elmo?
- Tem o rosto aberto. - Tyrion apertou o nariz dela. - Gosto de olhar seu nariz. É melhor que você o deixe guardado.
Os olhos dela se arregalaram.
- Você gosta do meu nariz?
Ó, Sete, salvem-me. Tyrion virou-se e começou a fuçar entre algumas pilhas de armaduras velhas em direção ao fundo do carroção.
- Há outras partes minhas de que você gosta? - Merreca perguntou.
Talvez ela pretendesse que aquilo soasse brincalhão. Em vez disso, soou triste.
- Gosto de todas as suas partes - Tyrion respondeu, na esperança de encerrar qualquer outra discussão sobre o assunto - e gosto até mesmo das minhas.
- Por que precisamos de armaduras? Somos apenas pantomimeiros. Apenas fingimos lutar.
- Você finge muito bem - disse Tyrion, examinando uma pesada camisa de cota de malha de ferro tão cheia de buracos que quase parecia comida por traças. Que tipo de traça come correntes de ferro? - Fingir-se de morta é uma maneira de sobreviver à batalha. Uma boa armadura é outra. - Embora haja bem pouco disso aqui, temo. No Ramo Verde, ele lutara com pedaços desencontrados de placas dos carroções de Lorde Lefford, com um elmo cilíndrico pontudo que o fazia parecer como se alguém tivesse virado um balde de água suja em sua cabeça. Esse aço da companhia era pior. Não apenas velho e inadequado, mas amassado, rachado e quebradiço. Isso é sangue seco ou apenas ferrugem? Deu uma cheirada, mas ainda assim não podia ter certeza.
- Aqui está uma besta. - Merreca mostrou para ele.
Tyrion olhou para a arma.
- Não posso usar um guincho de estribo. Minhas pernas não são compridas o suficiente. Uma manivela seria melhor. - Embora, verdade fosse dita, ele não quisesse uma besta. Levavam muito tempo para recarregar. Mesmo se ficasse escondido na vala das latrinas esperando que algum inimigo viesse se agachar, as chances de perder mais de uma flecha podiam não ser poucas.
Em vez disso, pegou uma clava, deu uma balançada e colocou-a no lugar. Muito pesada. Passou por um martelo de guerra (muito longo), uma maça (também muito pesada), e meia dúzia de espadas longas antes de encontrar um punhal do qual gostou, um desagradável pedaço de aço com uma lâmina triangular.
- Isto pode servir - disse. A lâmina tinha um pouco de ferrugem, mas isso apenas a deixava mais asquerosa. Encontrou uma bainha de madeira e couro que se adaptava e colocou o punhal dentro.
- Uma espada pequena para um homem pequeno? - brincou Merreca.
- É um punhal, e feito para um grande homem. - Tyrion mostrou para ela uma antiga espada longa. - Isso é uma espada. Experimente.
Merreca pegou a arma, balançou-a, franziu o cenho.
- É muito pesada.
- Aço pesa mais do que madeira. Golpeie o pescoço de um homem com essa coisa, no entanto, e é como se a cabeça dele se transformasse em um melão. - Pegou a espada dela e a inspecionou mais de perto. - Aço barato. E chanfrado. Aqui, vê? Retiro o que eu disse. Você precisa de uma lâmina melhor para arrancar cabeças.
- Não quero arrancar cabeças.
- Nem devia. Mantenha os golpes abaixo do joelho. Panturrilha, tendão, tornozelo ... até gigantes caem se você cortar os pés deles fora. Uma vez que estejam caídos, não são maiores do que você.
Merreca olhou como se estivesse prestes a chorar.
- Noite passada, sonhei que meu irmão estava vivo novamente. Estávamos disputando justas para um grande senhor, cavalgando Triturador e Porca Bonita, e os homens jogavam rosas em nós. Estávamos tão felizes ...
Tyrion deu um tapa nela.
Foi um golpe suave, apesar de tudo, um pequeno movimento do pulso, com pouca força atrás dele. Nem deixou marca na bochecha. Mas os olhos dela se encheram de lágrimas do mesmo jeito.
- Se quer sonhar, volte a dormir - ele lhe disse. - Quando acordar, ainda seremos escravos fugitivos no meio de um cerco. Triturador está morto. A porca também, provavelmente. Agora encontre alguma armadura e a coloque, não importa onde ela incomode. O espetáculo de pantomimeiros acabou. Lute, esconda-se ou se cague, como quiser, mas o que quer que decida fazer, fará vestida em aço.
Merreca tocou a bochecha que ele batera.
- Nunca devíamos ter fugido. Não somos mercenários. Não somos nenhum tipo de guerreiros. Não era tão ruim com Yezzan. Não era. O Babá era cruel algumas vezes, mas Yezzan não. Nós éramos seus favoritos, seus ... seus ...
- Escravos. A palavra que você está procurando é escravos.
- Escravos - ela disse, enrubescendo. - Mas éramos seus escravos especiais. Como Doces. Seus tesouros.
Seus animais de estimação, pensou Tyrion. E ele nos amava tanto que nos mandou para a arena, para sermos devorados por leões.
Ela não estava completamente errada. Os escravos de Yezzan comiam melhor do que muitos camponeses nos Sete Reinos, e era menos provável que morressem de fome no inverno. Escravos eram bens, sim. Podiam ser comprados e vendidos, chicoteados e marcados, usados para o prazer carnal de seus proprietários, acasalados para gerarem mais escravos. Nesse sentido, não eram mais do que cães ou cavalos. Mas a maioria dos senhores tratava seus cães e cavalos muito bem. Homens orgulhosos podiam gritar que preferiam morrer do que viver como escravos, mas o orgulho era barato. Quando o aço soltava faísca, tais homens eram raros como dente de dragão e de outro modo, o mundo não estaria tão cheio de escravos. Nunca houve um escravo que não escolheu ser escravo, o anão refletiu. Sua escolha pode ser entre a escravidão e a morte, mas a escolha sempre está ali.
Tyrion Lannister não era exceção. Sua língua lhe garantira algumas listras nas costas no início, mas logo aprendera os truques para agradar o Babá e o nobre Yezzan. Jorah Mormont lutara mais tempo e mais duramente, mas chegara ao mesmo lugar no final.
E Merreca, hem ...
Merreca estivera procurando um novo mestre desde o dia em que seu irmão Tostão perdera a cabeça. Ela quer alguém que tome conta dela, alguém que lhe diga o que fazer.
Teria sido muito cruel dizer uma coisa dessas, no entanto. Em vez disso, Tyrion falou:
- Os escravos especiais de Yezzan não escaparam da égua descorada. Estão mortos, todos eles. Doces foi a primeira a ir. - O mestre mamute deles morrera no dia em que fugiram, Ben Mulato Plumm lhe contara. Nem ele, nem Kasporio, nem nenhum dos outros mercenários sabia o destino dos habitantes do circo grotesco de Yezzan ... mas, se a Bela Merreca precisava de mentiras para parar com seu lamento, ele mentiria para ela.
- Se quer ser uma escrava novamente, eu encontrarei um mestre gentil para você quando a guerra acabar e venderei você por ouro suficiente para me levar para casa - Tyrion prometeu. - Encontrarei um bom yunkaíta que lhe dê outra bela coleira dourada, com guizos que toquem aonde quer que você vá. Primeiro, no entanto, você precisa sobreviver ao que está chegando. Ninguém compra pantomimeiros mortos.
- Ou anãos mortos - disse Jorah Mormont. - Estaremos todos alimentando vermes quando esta batalha acabar. Os yunkaítas já perderam esta guerra, embora levem algum tempo para descobrir isso. Meereen tem um exército de Imaculados, os melhores do mundo. E Meereen tem dragões. Três deles, uma vez que a rainha retorne. Ela retornará. Ela tem que retornar. Nosso lado consiste em dois grupos de fidalgotes yunkaítas, cada um com seus próprios homens-macacos semitreinados. Escravos em pernas de pau, escravos em correntes ... pode ser que tenham tropas de cegos e de crianças paralíticas também, não me estranharia.
- Oh, eu sei - disse Tyrion. - Os Segundos Filhos estão no lado perdedor. Precisam virar suas casacas novamente, e virar agora. - Ele riu. - Deixe isso comigo. 

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