sexta-feira, 4 de outubro de 2013

67 - O DERRUBADOR DE REIS


Uma sombra clara e uma escura, os dois conspiradores chegaram juntos à quietude do arsenal no segundo nível da Grande Pirâmide, entre estantes de lanças, feixes de setas e paredes onde estavam pendurados troféus de batalhas esquecidas.
- Esta noite - disse Skahaz mo Kandaq. O rosto de bronze de um morcego vampiro surgiu por baixo do capuz do manto de retalhos. - Todos os meus homens estão a postos. A senha é Groleo.
- Groleo. - Isso é justo, suponho. - Sim. O que foi feito com ele... você estava na corte?
- Um guarda entre quarenta. Todos esperando que aquela túnica vazia no trono desse a ordem para que pudéssemos cortar Barbassangrenta e os outros. Você acha que os yunkaítas ousariam presentear Daenerys com a cabeça de seu refém?
Não, pensou Selmy.
- Hizdahr parecia perturbado.
- Fingimento. Os parentes de Loraq foram devolvidos sem danos. Você viu. Os yunkaítas encenaram uma farsa de pantomimeiros, com o nobre Hizdahr como o pantomimeiro-chefe. A questão nunca foi Yurkhaz zo Yunzak. Os outros senhores de escravos alegremente pisoteariam aquele velho tolo eles mesmos. Isso era para dar a Hizdahr um pretexto para matar os dragões.
Sor Barristan remoeu aquilo.
- Ele ousaria?
- Ele ousaria matar a rainha. Por que não os animais de estimação dela? Se não agirmos, Hizdahr vai hesitar por um tempo, para provar sua relutância e permitir que os Sábios Mestres tenham a chance de livrá-lo do Corvo Tormentoso e do companheiro de sangue. Então agirá. Eles querem os dragões mortos antes que a frota volantina chegue.
Sim, eles iriam querer isso. Tudo se encaixa. Isso não significava que Barristan Selmy gostasse daquela história.
- Isso não vai acontecer. - Sua rainha era a Mãe de Dragões; ele não permitiria que os filhos dela fossem machucados. - Na hora do lobo. A parte mais escura da noite, quando o mundo todo está dormindo. - Ouvira essas palavras pela primeira vez de Tywin Lannister, do lado de fora das muralhas de Valdocaso. Ele me deu um dia para tirar Aerys de lá. Se eu não retornasse com o rei ao amanhecer do dia seguinte, ele tomaria a cidade com aço e fogo, me disse. Era a hora do lobo quando entrei e era a hora do lobo quando saí. - Verme Cinzento e os Imaculados fecharão e trancarão os portões à primeira luz.
- Melhor atacar à primeira luz - Skahaz disse. - Irrompemos dos portões e invadimos as linhas do cerco, esmagamos os yunkaítas enquanto estiverem tropeçando para fora de suas camas.
- Não. - Os dois já tinham discutido isso antes. - Há uma paz, assinada e selada por Sua Graça, a rainha. Não seremos os primeiros a rompê-la. Uma vez que tivermos capturado Hizdahr, formaremos um conselho para governar no lugar dele e exigir que os yunkaítas devolvam nossos reféns e retirem seus exércitos. Se eles se recusarem, então, e somente então, vamos informá-los de que a paz está rompida, e sairemos para lhes dar batalha. Seu jeito é desonroso.
- Seu jeito é estúpido - o Cabeça-Raspada disse. - A hora é agora. Nossos libertos estão prontos. Famintos.
Isso era verdade, Selmy sabia. Symon Costas-Listradas, dos Irmãos Livres, e Mollono Yos Oob, dos Escudos Robustos, estavam ansiosos por batalha, com a intenção de testar a si mesmos e lavar todos os males que tinham sofrido em uma maré de sangue yunkaíta. Apenas Marselen, dos Homens da Mãe, partilhava as dúvidas de Sor Barristan.
- Já discutimos isso. Você concordou que seria do meu jeito.
- Concordei - o Cabeça-Raspada resmungou - mas isso foi antes de Groleo. A cabeça. Os senhores de escravos não têm honra.
- Nós temos - disse Sor Barristan.
O Cabeça-Raspada murmurou alguma coisa em ghiscari e então disse:
- Como quiser. Embora creia que vamos lastimar sua honra de velho antes que este jogo acabe, eu acho. E os guardas de Hizdahr?
- Sua Graça mantém dois homens com ele quando dorme. Um na porta do quarto de dormir, um segundo do lado de dentro, em uma alcova adjacente. Esta noite serão Khrazz e Pele de Aço.
- Khrazz - o Cabeça-Raspada resmungou. - Não gosto deste aí.
- Isso não precisa chegar a sangue - Sor Barristan disse para ele. - Pretendo conversar com Hizdahr. Se ele entender que não pretendemos matá-lo, pode ordenar que os guardas se rendam.
- E se não? Hizdahr pode escapar de nós.
- Ele não escapará. - Selmy não temia Khrazz, muito menos Pele de Aço. Eram apenas lutadores de arena. A temível coleção de ex-escravos lutadores de Hizdahr formava guardas indiferentes, na melhor das hipóteses. Tinham velocidade, força e ferocidade, e alguma habilidade nas armas também, mas jogos de sangue eram um treinamento pobre para proteger reis. Nas arenas, os inimigos eram anunciados com trombetas e tambores, e, depois que a batalha acabava, os vencedores podiam ter suas feridas tratadas e tomar grandes goles de leite de papoula para a dor, sabendo que a ameaça havia passado e estavam livres para beber, festejar e fornicar até a próxima luta. Mas a batalha nunca acabava de verdade para um cavaleiro da Guarda Real. Ameaças vinham de todos os lugares e de lugar algum, e a qualquer hora do dia ou da noite. Nenhuma trombeta anunciava o inimigo; vassalos, servos, amigos, irmãos, filhos, até mesmo esposas, qualquer um podia ter uma faca sob o manto e o assassinato escondido no coração. Para cada hora de luta, o cavaleiro da Guarda Real gastava dez; mil horas observando, esperando, parado em silêncio nas sombras. Os lutadores de arena do Rei Hizdahr já estavam ficando entediados e impacientes com seus novos deveres, e homens entediados ficavam negligentes e lentos na reação.
- Eu lidarei com Khrazz - disse Sor Barristan. - Apenas assegure-se de que não precisarei lidar com nenhuma Besta de Bronze também.
- Não tema. Teremos Marghaz acorrentado antes que possa fazer mal. Eu disse para você, as Bestas de Bronze são minhas.
- Você disse que tem homens entre os yunkaítas?
- Delatores e espiões. Reznak tem mais.
Reznak não é de confiança. Ele cheira muito doce e parece muito desleal.
- Alguém precisa libertar nossos reféns. A menos que tenhamos nosso pessoal de volta, os yunkaítas os usarão contra nós.
Skahaz bufou pelos buracos do nariz da sua máscara.
- Fácil falar em resgate. Difícil fazer. Deixe os senhores de escravos ameaçarem.
- E se fizerem mais do que ameaçar?
- Sentiria muita falta deles, velho? Um eunuco, um selvagem e um mercenário?
Herói, Jhogo e Daario.
- Jhogo é companheiro de sangue da rainha, sangue de seu sangue. Atravessaram o deserto vermelho juntos. Herói é o segundo em comando de Verme Cinzento. E Daario ... - Ela ama Daario. Via isso em seus olhos, quando ela olhava para o mercenário, ouvia em sua voz quando falava dele. - ... Daario é vaidoso e imprudente, mas é caro à Sua Graça. Ele deve ser resgatado, antes que seus Corvos Tormentosos decidam resolver a questão por si. Isso pode ser feito. Uma vez eu tirei o pai da rainha em segurança de Valdocaso, onde estava sendo mantido cativo por um senhor rebelde, mas ...
- ... você nunca poderia esperar passar despercebido entre os yunkaítas. Todos os homens deles conhecem seu rosto agora.
Eu poderia esconder meu rosto, como você, pensou Selmy, mas sabia que o Cabeça-Raspada estava certo. Valdocaso acontecera havia muito tempo. Era velho demais para tais atos heroicos.
- Então precisamos encontrar outro meio. Algum outro salvador. Alguém conhecido dos yunkaítas, cuja presença no acampamento não seja notada.
- Daario chama você de Sor Vovô - Skahaz o recordou. - Não vou dizer do que ele me chama. Se você e eu fôssemos os reféns, ele arriscaria a pele por nós?
Provavelmente não, pensou, mas respondeu:
- Ele poderia ....
- Daario mijaria em nós se estivéssemos queimando. Caso contrário, não espere ajuda dele. Deixe os Corvos Tormentosos escolherem outro capitão, um que conheça seu lugar. Se a rainha não voltar, o mundo terá um mercenário a menos. Quem vai lamentar?
- E quando ela retornar?
- Ela vai chorar, arrancar os cabelos e amaldiçoar os yunkaítas. Não nós. Nenhum sangue estará em nossas mãos. Você pode confortá-la. Conte-lhe alguma história dos velhos tempos, ela gosta disso. Pobre Daario, seu bravo capitão ... ela nunca o esquecerá, não ... mas será melhor para todos nós se ele estiver morto, não? Melhor para Daenerys também.
Melhor para Daenerys e para Westeros. Daenerys Targaryen amava seu capitão, mas essa era a garota nela, não a rainha. O Príncipe Rhaegar amou sua Senhora Lyanna, e milhares morreram por isso. Daemon Blackfyre amou a primeira Daenerys, e levantou-se em rebelião quando ela lhe foi negada. Açoamargo e Corvo de Sangue amaram Shiera Seastar, e os Sete Reinos sangraram. O Príncipe das Libélulas amou tanto Jenny de Pedra velhas que deixou de lado uma coroa, e Westeros pagou o dote da noiva em cadáveres. Todos os três filhos do quinto Aegon se casaram por amor, em desafio aos desejos do pai. E porque aquele monarca fora do comum tinha, ele mesmo, seguido seu coração quando escolheu sua rainha, permitiu que os filhos trilhassem seu caminho, fazendo amargos inimigos onde poderia ter tido bons amigos. Traição e tumulto se sucederam, como a noite segue o dia, terminando no Solar de Verão, em feitiçaria, fogo e lamento.
O amor dela por Daario é veneno. Um veneno mais lento do que os gafanhotos, mas no fim tão mortal quanto.
- Ainda há Jhogo - Sor Barristan disse. - Ele e Herói. Ambos preciosos para Sua Graça.
- Temos reféns também - Skahaz Cabeça-Raspada o recordou. - Se os senhores de escravos matarem um dos nossos, matamos um dos deles.
Por um momento, Sor Barristan não soube o que ele quis dizer. Então entendeu.
- Os copeiros da rainha?
- Reféns - insistiu Skahaz mo Kandaq. - Grazhar e Qezza são do sangue da Graça Verde. Mezzara é de Merreq, Kezmya é Pahl, Azzak, Ghazeen. Bhakaz é Loraq, parente do próprio Hizdahr. Todos são filhos e filhas das pirâmides. Zhak, Quazzar, Uhlez, Hazkar, Dhazak, Yherizan, todos filhos dos Grandes Mestres.
- Garotas inocentes e meninos imberbes. - Sor Barristan viera a conhecer todos eles durante o tempo em que serviram a rainha, Grazhar com seus sonhos de glória, a tímida Mezzara, o preguiçoso Miklaz, a vaidosa e bonita Kezmya, Qezza com seus grandes olhos suaves e voz de anjo, Dhazzar, o dançarino, e os demais. - Crianças.
- Crianças da Harpia. Apenas sangue pode pagar sangue.
- O mesmo disse o yunkaíta que trouxe a cabeça de Groleo.
- Ele não estava errado.
- Não permitirei isso.
- Para que servem reféns, se não podem ser tocados?
- Talvez possamos oferecer três das crianças por Daario, Herói e Jhogo - Sor Barristan consentiu. - Sua Graça ...
- ... não está aqui. Somos você e eu que temos que fazer o que deve ser feito. Você sabe que estou certo.
- O Príncipe Rhaegar tinha dois filhos - Sor Barristan contou. - Rhaenys era uma menininha, Aegon um bebê de colo. Quando Tywin Lannister tomou Porto Real, seus homens mataram os dois. Ele apresentou os corpos ensanguentados em mantos carmesins, um presente para o novo rei. - E o que Robert disse quando os viu? Será que ele sorriu? Barristan Selmy fora gravemente ferido no Tridente, então fora poupado da visão do presente de Lorde Tywin, mas frequentemente se perguntava isso. Se eu o tivesse visto sorrir sobre os restos tingidos de vermelho dos filhos de Rhaegar, nenhum exército nesta terra teria me impedido de matá-lo. - Não suportarei o assassinato de crianças. Aceite, ou não tomarei parte nisso.
Skahaz riu.
- Você é um velho teimoso. Seus meninos imberbes crescerão apenas para se tornar Filhos da Harpia. Mate-os agora, ou mate-os então.
- Você mata homens pelos erros que cometeram, não pelos erros que podem cometer um dia.
O Cabeça-Raspada pegou um machado da parede, inspecionou-o e grunhiu.
- Que seja. Nenhum dano para Hizdahr ou seus reféns. Isso o contentará, Sor Vovô?
Nada a respeito disso me contentará.
- Servirá. A hora do lobo. Lembre-se.
- Não pretendo esquecer, sor. - Embora a boca do morcego de bronze não se mexesse, Sor Barristan pôde sentir o largo sorriso sob a máscara. - Por muito tempo, Kandaq esperou por esta noite.
É isso que temo. Se o Rei Hizdahr fosse inocente, o que fariam era traição. Mas como poderia ser inocente? Selmy ouvira-o insistir para que Daenerys provasse os gafanhotos envenenados, gritar aos seus homens que matassem o dragão. Se não agirmos, Hizdahr matará os dragões e abrirá os portões para os inimigos da rainha. Não temos escolha. Mesmo assim, não importava o quanto virasse ou revirasse, o velho cavaleiro não encontrava honra em nada daquilo.
O restante daquele longo dia passou com a rapidez de um caracol.
Em algum lugar, ele sabia, o Rei Hizdahr estava se consultando com Reznak mo Reznak, Marghaz zo Loraq, Galazza Galare e seus outros conselheiros meereeneses, decidindo qual a melhor resposta para as exigências de Yunkai ... mas Barristan Selmy não fazia mais parte desses conselhos. Nem tinha um rei para proteger. Em vez disso, fez rondas na pirâmide, do topo à base, para assegurar-se de que as sentinelas estavam todas em seus postos. Aquilo tomou a maior parte da manhã. Passou a tarde com seus órfãos, e até pegou uma espada e um escudo para fazer, ele mesmo, um teste mais vigoroso com alguns dos rapazes mais velhos.
Alguns já haviam sido treinados para as arenas de lutas quando Daenerys Targaryen tomou Meereen e os libertou de suas correntes. Tinham um bom conhecimento da espada, da lança e do machado de batalha antes mesmo que Sor Barristan tomasse conta deles. Alguns poderiam muito bem estar prontos. O garoto das Ilhas Basilisco, para começar. Tumco Lho. Era negro como tinta de meistre, mas rápido e forte, o melhor espadachim natural que Selmy conhecera desde Jaime Lannister. Larraq também. O Chicote. Sor Barristan não aprovava seu estilo de luta, mas não tinha dúvida de suas habilidades. Larraq tinha anos de trabalho pela frente antes de dominar apropriadamente as armas dos cavaleiros, espada, lança e clava, mas era mortal com o chicote e o tridente. O velho cavaleiro o avisara de que o chicote seria inútil contra um inimigo em armadura ... até ver como Larraq o usava, enrolando-o na perna de seus oponentes para derrubá-los. Não é um cavaleiro ainda, mas um guerreiro feroz.
Larraq e Tumco eram seus melhores. Depois deles, o lhazareno, aquele que os outros meninos chamavam de Ovelha Vermelha, embora fosse todo ferocidade e nenhuma técnica. Talvez os irmãos também, três ghiscaris de baixo nascimento escravizados para pagar as dívidas do pai.
Aquilo totalizava seis. Seis de vinte e sete. Selmy poderia ter esperado mais, mas seis era um bom começo. Os outros meninos eram mais jovens, na maior parte, e mais familiares com teares, arados e penicos do que com espadas e escudos, mas trabalhavam duro e aprendiam rápido. Alguns anos como escudeiros, e poderia ter mais seis cavaleiros para dar à sua rainha. E para aqueles que nunca estariam prontos, bem, nem todo menino está destinado a ser um cavaleiro. O reino precisa de fabricantes de velas, de estalajadeiros e de armeiros também. Isso é tão verdade em Meereen quanto era em Westeros.
Enquanto os observava em seus exercícios, Sor Barristan considerou elevar Tumco e Larraq à cavalaria ali mesmo e naquele momento, e talvez a Ovelha Vermelha também. Era necessário um cavaleiro para treinar um cavaleiro, e, se algo desse errado naquela noite, o amanhecer podia encontrá-lo morto ou em um calabouço. Quem se responsabilizaria por seus escudeiros, então? Por outro lado, a reputação de um jovem cavaleiro derivava em parte da honra do homem que conferia o título a ele. Não faria aos seus rapazes bem algum ficarem conhecidos por ter recebido as esporas de um traidor, e isso ainda poderia colocá-los em um calabouço ao seu lado. Eles merecem algo melhor, Sor Barristan decidiu. É melhor uma vida longa como escudeiro do que uma curta como cavaleiro sujo.
Quando a tarde começou a se misturar com a noite, ele propôs que os pupilos baixassem espadas e escudos e se reunissem ao seu redor. Falou o que significava ser um cavaleiro.
- É o cavalheirismo que faz um verdadeiro cavaleiro, não a espada - disse. - Sem honra, um cavaleiro não é mais do que um simples matador. É melhor morrer com honra do que viver sem ela. - Os garotos olharam para ele com estranheza, pensou, mas um dia entenderiam.
Depois disso, de volta ao ápice da pirâmide, Sor Barristan encontrou Missandei entre pilhas de rolos de pergaminhos e livros, lendo.
- Fique aqui esta noite, filha - disse para ela. - O que quer que aconteça, o que quer que veja ou escute, não saia dos aposentos da rainha.
- Esta uma escuta - a garota disse. - Se pode perguntar...
- Melhor não. - Sor Barristan caminhou sozinho até os jardins do terraço. Não sou feito para isso, refletiu, enquanto olhava para a grande cidade. As pirâmides despertavam, uma a uma, lanternas e tochas ganhando vida, enquanto as sombras se reuniam nas ruas abaixo. Conluios, estratagemas, sussurros, mentiras, segredos dentro de segredos, e de alguma maneira me tornei parte disso.
Talvez já devesse ter se acostumado a isso. A Fortaleza Vermelha tinha seus segredos também. Até mesmo Rhaegar. O Príncipe de Pedra do Dragão nunca confiara nele como confiara em Arthur Dayne. Harrenhal era a prova disso. O ano da falsa primavera.
A lembrança ainda era amarga. O velho Lorde Whent havia anunciado o torneio logo depois de uma visita de seu irmão, Sor Oswell Whent da Guarda ReaL Com Varys sussurrando em seu ouvido, o Rei Aerys se convenceu de que seu filho estava conspirando para depô-lo, e que o torneio de Whent era apenas um estratagema para dar a Rhaegar o pretexto de se encontrar com muitos grandes senhores que estariam reunidos. Aerys não havia colocado o pé para fora da Fortaleza Vermelha desde Valdocaso, mesmo assim, repentinamente, anunciou que acompanharia o Príncipe Rhaegar a Harrenhal, e tudo dera errado a partir dali.
Se eu tivesse sido um cavaleiro melhor... se eu tivesse derrubado o príncipe do cavalo na última volta, como derrubei tantos outros, teria sido eu a escolher a rainha do amor e da beleza ...
Rhaegar escolhera Lyanna Stark de Winterfell. Barristan Selmy teria feito uma escolha diferente. Não a rainha, que não estava presente. Nem Elia de Dome, embora fosse boa e gentil; se ela tivesse sido escolhida, muita guerra e desgraça teriam sido evitadas. Sua escolha recairia em uma jovem donzela que estava não havia muito tempo na corte, uma das acompanhantes de Elia ... embora, se comparada com Ashara Dayne, a princesa dornense fosse uma desleixada qualquer.
Mesmo depois de todos esses anos, Sor Barristan ainda se lembrava do sorriso de Ashara, do som de sua risada. Tinha apenas que fechar os olhos para vê-la, com seu longo cabelo escuro descendo pelos ombros e aqueles assombrosos olhos púrpura. Daenerys tem os mesmos olhos. Algumas vezes, quando a rainha o olhava, ele sentia como se estivesse vendo a filha de Ashara.
Mas a filha de Ashara nascera morta, e sua bela mãe se jogara de uma torre pouco tempo depois, louca de dor pela criança que perdera e, talvez, pelo homem que a desonrara em Harrenhal também. Morreu sem saber que Sor Barristan a amava. Como poderia saber? Ele era um cavaleiro da Guarda Real, juramentado ao celibato. Nada de bom viria ao contar seus sentimentos para ela. Nada de bom veio do silêncio tampouco. Se eu tivesse derrubado Rhaegar do cavalo e coroado Ashara rainha do amor e da beleza, ela teria olhado para mim em vez de Stark?
Nunca saberia. Mas, de todos os seus fracassos, nenhum assombrava Barristan Selmy tanto quanto esse.
O céu estava nublado, o ar quente, abafado, opressivo, mas havia algo nele que fazia sua espinha formigar. Chuva, pensou. Uma tempestade está chegando. Se não esta noite, amanhã. Sor Barristan se perguntava se estaria vivo para ver. Se Hizdahr tem seu próprio Aranha, estou praticamente morto. Se chegasse a isso, pretendia morrer como vivera, com sua espada longa na mão.
Quando a última luz desapareceu no oeste, atrás das velas dos navios que rondavam a Baía dos Escravos, Sor Barristan entrou, convocou um par de servos e disse-lhes que esquentassem um pouco de água para o banho. Treinar com seus escudeiros no calor da tarde o deixara sentindo-se sujo e suado.
A água, quando chegou, estava apenas morna, mas Selmy se demorou no banho até que esfriasse, e esfregou a pele até que estivesse em carne viva. Limpo como nunca estivera, levantou-se, secou-se e vestiu-se de branco. Meias, roupas íntimas, túnica de seda, justilho acolchoado, tudo recém-lavado e branqueado. Por cima, vestiu a armadura que a rainha lhe dera como símbolo de sua estima. A cota de malha era dourada, finamente trabalhada, os elos tão flexíveis quanto couro bom, as placas esmaltadas, duras como gelo e brilhantes como neve recém-caída. A adaga estava em um lado do quadril, a espada longa do outro, pendurada em um cinto de couro branco com fivelas douradas. Por último, colocou o longo manto branco e o prendeu nos ombros.
Deixou o elmo pendurado em um gancho. A fenda estreita do olho limitava a visão, e precisava ser capaz de ver o que estava por vir. As salas da pirâmide ficavam escuras à noite, e inimigos podiam chegar de todos os lados. Além disso, embora as asas de dragão ornamentadas que adornavam o elmo fossem esplêndidas de se ver, também podiam facilmente prender uma espada ou um machado. Deixaria o elmo para o próximo torneio, se os Sete lhe garantissem um.
Armado e blindado, o velho cavaleiro esperou, sentado na escuridão de sua pequena câmara adjacente aos aposentos da rainha. O rosto de todos os reis que servira e com os quais falhara autuava diante dele na escuridão, e o rosto dos irmãos que serviram ao seu lado na Guarda Real também. Perguntava-se quantos deles teriam feito o que ele estava prestes a fazer. Alguns, certamente. Mas não todos. Alguns não teriam hesitado em prender o Cabeça-Raspada como traidor. Do lado de fora da pirâmide, começou a chover. Sor Barristan continuou sentado na escuridão, ouvindo. Soam como lágrimas, pensou. Soam como reis mortos chorando.
Então chegou a hora de ir.
A Grande Pirâmide de Meereen fora construída como uma cópia da Grande Pirâmide de Ghis, cujas colossais ruínas Lomas Longstrider visitara certa vez. Como a antiga predecessora, com seus salões de mármore vermelho agora assombrados por morcegos e aranhas, a pirâmide meereenesa ostentava trinta e três níveis, número que era de alguma forma sagrado aos deuses de Ghis. Sor Barristan começou a longa descida sozinho, o manto branco ondulando atrás dele. Foi pela escada de serviço, não pela grande escadaria de mármore raiado, mas pelos degraus estreitos, íngremes e retos escondidos entre as grossas paredes de tijolos.
Doze níveis abaixo, encontrou o Cabeça-Raspada esperando, as feições grosseiras ainda escondidas pela máscara que usara naquela manhã, do morcego vampiro. Seis Bestas de Bronze estavam com ele. Todos mascarados como insetos, idênticos uns aos outros. Gafanhotos, Selmy percebeu.
- Groleo - disse.
- Groleo - um dos gafanhotos respondeu.
- Tenho mais gafanhotos, se precisar - disse Skahaz.
- Seis servirão. E os homens nas portas?
- Meus. Vocês não terão problemas.
Sor Barristan agarrou o Cabeça-Raspada pelo braço.
- Não derrame sangue, a menos que precise. Quando a manhã chegar, convocaremos um conselho e diremos à cidade o que fizemos e por quê.
- Como quiser. Boa sorte para você, velho.
Foram por caminhos diferentes. As Bestas de Bronze seguiram Sor Barristan enquanto ele continuava sua descida.
Os aposentos do rei estavam enterrados bem no coração da pirâmide, no décimo sexto e décimo sétimo níveis. Quando Selmy chegou a esses andares, encontrou as portas para o interior da pirâmide fechadas com correntes, com um par de Bestas de Bronze postadas como sentinelas. Sob o capuz de seus mantos de retalhos, um era um rato e o outro, um touro.
- Groleo - Sor Barristan disse.
- Groleo - o touro respondeu. - Terceiro salão à direita. - O rato destrancou a corrente. Sor Barristan e sua escolta entraram por um corredor de serviço estreito e iluminado por tochas, de tijolos vermelhos e negros. Seus passos ecoavam no chão enquanto passavam por dois salões e pegaram o terceiro à direita.
Do lado de fora das portas de madeira entalhadas dos aposentos do rei, estava Pele de Aço, um lutador de arena mais jovem, ainda não considerado de primeira categoria. Suas bochechas e testa eram marcadas por tatuagens intrincadas verdes e negras, antigos sinais de feitiçaria valirianos que, supostamente, tornavam a carne e a pele tão duras quanto aço. Marcas similares cobriam o peito e os braços, embora se realmente paravam uma espada ou um machado era algo que faltava ser visto.
Mesmo sem elas, Pele de Aço parecia formidável; um jovem magro e rijo, quase quinze centímetros mais alto do que Sor Barristan.
- Quem vem aí? - perguntou, balançando seu machado longo de um lado para o outro para barrar o caminho deles. Quando viu Sor Barristan com os gafanhotos de bronze atrás dele, abaixou a arma. - Velho Sor.
- Se for do agrado do rei, preciso ter algumas palavras com ele.
- A hora é tardia.
- A hora é tardia, mas a necessidade é urgente.
- Posso perguntar. - Pele de Aço bateu a coronha de seu machado longo contra a porta dos aposentos do rei. Um buraco deslizante se abriu. Um olho de criança apareceu. Uma voz de criança falou pela porta. Pele de Aço respondeu. Sor Barristan ouviu o som de uma pesada barra sendo puxada. A porta se abriu.
- Apenas você - disse Pele de Aço. - As bestas esperam aqui.
- Como quiser. - Sor Barristan acenou com a cabeça para os gafanhotos. Um deles acenou de volta. Sozinho, Selmy atravessou a porta.
Escuros e sem janelas, cercados por todos os lados por paredes de tijolos de dois metros e meio de espessura, os aposentos que o rei tomara para si eram grandes e luxuosos por dentro. Grandes vigas de carvalho negro apoiavam o alto pé direito. O chão era coberto com tapetes de seda de Qarth. Nas paredes estavam tapeçarias de valor inestimável, antigas e muito desbotadas, representando a glória do Antigo Império de Ghis. A maior delas mostrava os últimos sobreviventes de um derrotado exército valiriano sendo subjugados e acorrentados. A arcada que conduzia ao quarto de dormir real era guardada por um par de amantes de sândalo, moldados, polidos e envernizados. Sor Barristan achou de mau gosto, embora, sem dúvida, pretendessem ser excitantes. Quanto antes sairmos deste lugar, melhor.
Um braseiro de ferro fornecia a única luz. Ao lado dele estavam dois dos copeiros da rainha, Draqaz e Qezza.
- Miklaz foi acordar o rei - disse Qezza. - Posso trazer-lhe vinho, sor?
- Não. Obrigado.
- Pode se sentar - disse Draqaz, indicando um banco.
- Prefiro ficar em pé. - Podia ouvir vozes através da arcada, vindas do quarto de dormir. Uma delas era a do rei.
Passaram ainda uns bons momentos antes que o Rei Hizdahr zo Loraq, Décimo Quarto de Seu Nobre Nome, emergisse bocejando, amarrando o cinto que prendia seu roupão. O roupão era de cetim verde, ricamente trabalhado com pérolas e fios prateados. Por baixo, o rei estava totalmente nu. Isso era bom. Homens nus sentiam-se vulneráveis e eram menos inclinados a atos de heroísmo suicida.
A mulher que Sor Barristan vislumbrou espiando pelas arcadas, atrás de uma cortina transparente, estava nua também, os seios e quadris apenas parcialmente escondidos pela seda ondulante.
- Sor Barristan. - Hizdahr bocejou novamente. - Que horas são? Há alguma notícia da minha doce rainha?
- Nenhuma, Vossa Graça.
Hizdahr suspirou.
- Vossa Magnificência, por favor. Embora, a esta hora, “Vossa Sonolência” fosse mais adequado. - O rei foi até o aparador servir-se de um pouco de vinho, mas apenas uma gota restava no fundo do jarro. Um lampejo de contrariedade cruzou seu rosto. - Miklaz, vinho. Imediatamente.
- Sim, Vossa Veneração.
- Leve Draqaz com você. Um jarro de dourado da Árvore, e um daquele tinto doce. Nada do nosso mijo amarelo, por favor. E, da próxima vez que eu encontrar meu jarro vazio, posso ter que fazer uma mudança nas suas belas bochechas rosadas. - O garoto saiu correndo, e o rei virou-se para Selmy. - Sonhei que tinha encontrado Daenerys.
- Sonhos podem mentir, Vossa Graça.
- “Vosso Iluminado” serve. O que o traz aqui a esta hora, sor? Algum problema na cidade?
- A cidade está tranquila.
- É mesmo? - Hizdahr pareceu confuso. - Por que você veio?
- Para fazer uma pergunta. Magnificência, você é a Harpia?
A taça de vinho de Hizdahr escorregou de seus dedos, caiu no tapete, rolou.
- Você vem aos meus aposentos na escuridão da noite para me perguntar isso? Está louco? - Foi só então que o rei pareceu notar que Sor Barristan estava vestindo armadura e cota de malha. - O que ... por que... como ousa ...
- O veneno foi obra sua, Magnificência?
O Rei Hizdahr deu uns passos para trás.
- Os gafanhotos? Aquilo ... aquilo foi trabalho do dornense. Quentyn, o tal príncipe. Pergunte a Reznak, se duvida de mim.
- Você tem provas disso? Reznak tem?
- Não, ou então eu os teria presos. Talvez deva fazer isso de qualquer jeito. Marghaz arrancará uma confissão deles, não duvido. São todos envenenadores, esses dornenses. Reznak diz que são adoradores de serpentes.
- Eles comem serpentes - disse Sor Barristan. - Era sua arena, seu camarote, seus assentos. Vinho doce e almofadas macias, figos, melões e gafanhotos no mel. Você providenciou tudo. Você insistiu para que Sua Graça experimentasse os gafanhotos, mas você mesmo não provou nenhum.
- Eu ... temperos quentes não combinam comigo. Ela era minha esposa. Minha rainha. Por que eu iria querer envenená-la?
Era, ele diz. Ele acredita que ela está morta.
- Apenas você pode responder isso, Magnificência. Talvez desejasse colocar outra mulher no lugar dela. - Sor Barristan acenou com a cabeça para a garota espiando timidamente do quarto de dormir. - Aquela ali, talvez?
O rei olhou ao redor freneticamente.
- Ela? Ela não é nada. Uma escrava de cama. - Ergueu as mãos. - Me expressei mal. Não uma escrava. Uma mulher livre. Treinada no prazer. Mesmo um rei tem necessidades, ela ... ela não é da sua conta, sor. Eu nunca machucaria Daenerys. Nunca.
- Você insistiu para que a rainha provasse os gafanhotos. Eu escutei.
- Achei que ela gostaria deles. - Hizdahr recuou mais um passo. - Quentes e doces ao mesmo tempo.
- Quentes, doces e envenenados. Com meus próprios ouvidos escutei você ordenar aos homens da arena que matassem Drogon. Você gritou para eles.
Hizdahr passou a língua pelos lábios.
- A besta devorou a carne de Barsena. Dragões caçam homens. Ele estava matando, queimando ...
- ... queimando homens que pretendiam ferir sua rainha. Filhos da Harpia, provavelmente. Seus amigos.
- Não meus amigos.
- Você diz isso e, mesmo assim, quando pediu que parassem a matança, eles obedeceramo Por que fariam isso se não é um deles?
Hizdahr balançou a cabeça. Dessa vez não tinha resposta.
- Diga-me a verdade - Sor Barristan disse - você alguma vez a amou, mesmo que um pouco? Ou era apenas a coroa que você desejava?
- Desejo? Você ousa me falar em desejo? - A boca do rei contorceu-se de raiva. - Eu desejei a coroa, sim ... mas nem metade do que ela desejou seu mercenário. Talvez tenha sido seu precioso capitão quem tentou envenená-la, por colocá-lo de lado. E se eu comesse os gafanhotos também, bem, seria muito melhor.
- Daario é um matador, não um envenenador. - Sor Barristan aproximou-se do rei. - Você é a Harpia? - Dessa vez, colocou a mão no cabo de sua espada longa. - Diga-me a verdade, e eu prometo que terá uma morte rápida e limpa.
- Você presume demais, sor - disse Hizdahr. - Cansei dessas perguntas e de você. Está dispensado dos meus serviços. Deixe Meereen imediatamente e eu o deixarei viver.
- Se você não é a Harpia, dê-me o nome dele. - Sor Barristan puxou a espada da bainha. A borda afiada refletia a luz do braseiro, tornando-a uma linha de fogo laranja. Hizdahr desmantelou.
- Khrazz! - gritou, tropeçando para trás, na direção de seu quarto de dormir. - Khrazz! Khrazz!
Sor Barristan ouviu uma porta se abrir em algum lugar à sua esquerda. Virou-se a tempo de ver Khazz sair de trás de uma tapeçaria. Ele movia-se lentamente, ainda grogue de sono, mas estava com a arma em mãos: um arakh dothraki, comprido e curvo. Uma espada de golpeador, feita para permitir cortes profundos do lombo de um cavalo. Uma lâmina assassina contra inimigos seminus, na arena ou no campo de batalha. Mas, aqui, em um ambiente fechado, o comprimento do arakh era um fator contra, e Barristan Semly estava vestido com placas e cota de malha.
- Estou aqui por Hizdahr - o cavaleiro disse. - Abaixe seu aço e permaneça de lado, e nada de mau acontecerá a você.
Khrazz riu.
- Velho. Comerei seu coração. - Os dois homens tinham quase a mesma altura, mas Khrazz era uns doze quilos mais pesado e quarenta anos mais jovem, com pele clara, olhos mortos e uma crista de cabelo vermelho e negro eriçado que corria da testa até a base do pescoço.
- Então venha - disse Barristan, o Ousado.
Khrazz foi.
Pela primeira vez naquele dia, Selmy tinha certeza. Foi para isso que fui feito, pensou. A dança, a doce canção do aço, uma espada na mão e um inimigo na minha frente.
O lutador de arena era veloz, muito veloz, tão rápido quanto qualquer homem com o qual Sor Barristan já lutara. Naquelas grandes mãos, o arakh tornava-se um borrão assobiante, uma tempestade de aço que parecia chegar até o velho cavaleiro de três direções ao mesmo tempo. A maioria dos golpes era direcionada à sua cabeça. Khrazz não era tolo. Sem um elmo, Selmy era mais vulnerável do pescoço para cima.
Bloqueou os golpes com calma, sua espada longa encontrando cada ataque e desviando-o. As lâminas se tocaram e se tocaram novamente. Sor Barristan recuou. Pelo canto do olho, viu os copeiros observando com olhos tão grandes e brancos quanto ovos de galinha. Khrazz xingou e transformou um golpe alto em um baixo, passando pela lâmina do velho cavaleiro pela primeira vez, apenas para raspar inutilmente em uma greva branca de aço. O contragolpe de Selmy encontrou o ombro esquerdo do lutador de arena, partindo o linho fino para morder a carne embaixo. Sua túnica amarela começou a ficar rosada, depois vermelha.
- Apenas covardes se vestem de ferro - Khrazz declarou, circulando. Ninguém usava armadura nas arenas de luta. Era por sangue que a multidão vinha: morte, desmembramentos e gritos de agonia, a música das areias escarlate.
Sor Barristan virou-se para ele.
- Este covarde está prestes a matá-lo, sor. - O homem não era nenhum cavaleiro, mas sua coragem o fizera merecedor de tal cortesia. Khrazz não sabia lutar com um homem em armadura. Sor Barristan podia ver em seus olhos: dúvida, confusão, um princípio de medo. O lutador de arena surgiu novamente, gritando dessa vez como se o som pudesse matar seu inimigo onde o aço não pudera. O arakh golpeou embaixo, em cima, embaixo novamente.
Selmy bloqueou os ataques à sua cabeça e deixou a armadura parar o resto, enquanto sua própria lâmina abria a bochecha do lutador da orelha à boca, depois traçou uma linha em carne viva pelo seu peito. Sangue jorrava dos ferimentos de Khrazz. Aquilo parecia apenas torná-lo mais selvagem. Ele agarrou o braseiro com as mãos e atirou-o, espalhando brasas quentes pelos pés de Selmy. Sor Barristan saltou sobre elas. Khrazz golpeou seu braço e o acertou, mas o arakh conseguiu apenas lascar o esmalte duro antes de encontrar o aço embaixo.
- Na arena, isso teria arrancado seu braço, velho.
- Não estamos na arena.
- Tire essa armadura!
- Não é tarde demais para baixar seu aço. Renda-se.
- Morra - cuspiu Khrazz ... mas quando ergueu o arakh, a ponta da lâmina ficou presa em uma das tapeçarias da parede. Aquela era a oportunidade que Sor Barristan precisava. Cortou a barriga do lutador de arena, defendeu-se do arakh que se libertou, então acabou com Khrazz com um rápido golpe no coração enquanto as entranhas do lutador começaram a escorregar para fora como um ninho de enguias gordurosas.
Sangue e vísceras manchavam os tapetes de seda do rei. Selmy deu um passo para trás. A espada longa em sua mão estava vermelha até a metade de seu comprimento. Aqui e ali, os tapetes começavam a arder, onde brasas dispersas haviam caído. Podia ouvir a pobre Qezza soluçando.
- Não tenha medo - o velho cavaleiro disse. - Não pretendo feri-la, filha. Quero apenas o rei. - Limpou a espada em uma cortina e foi para o quarto de dormir, onde encontrou Hizdahr zo Loraq, Décimo Quarto de Seu Nobre Nome, escondido atrás de uma tapeçaria e choramingando.
- Poupe-me - implorou. - Não quero morrer.
- Poucos querem. Mesmo assim, todos os homens morrem. - Sor Barristan embainhou a espada e colocou Hizdahr em pé. - Venha. Vou escoltá-lo até sua cela. - As Bestas de Bronze já deviam ter desarmado Pele de Aço. - Será mantido prisioneiro até que a rainha volte. Se nada for provado contra você, nenhum mal lhe acontecerá. Tem minha palavra como cavaleiro. - Pegou o braço do rei e o levou para fora do quarto de dormir, sentindo-se estranhamente tonto, quase bêbado. Eu era um Guarda Real. O que sou agora?
Miklaz e Draqaz haviam retornado com o vinho de Hizdahr. Estavam parados na porta aberta, apertando os jarros contra o peito e encarando o cadáver de Khrazz com olhos arregalados. Qezza ainda estava chorando, mas Jezhene aparecera para confortá-la. Abraçou a menina mais nova, acariciando seus cabelos. Alguns dos outros copeiros estavam atrás delas, olhando.
- Vossa Veneração - Miklaz disse - o nobre Reznak mo Reznak pede para lhe d-dizer que venha imediatamente.
O garoto se dirigiu ao rei como se Sor Barristan não estivesse ali, como se não houvesse um homem morto deitado sobre o tapete, seu sangue lentamente tingindo a seda de vermelho. Skahaz devia ter levado Reznak sob custódia até que tivéssemos certeza de sua lealdade. Alguma coisa deu errado?
- Ir aonde? - Sor Barristan perguntou para o garoto. - Aonde o senescal quer que Sua Graça vá?
- Lá fora. - Miklaz pareceu vê-lo pela primeira vez. - Lá fora, sor. No t-terraço. Para ver.
- Ver o quê?
- D-d-dragões. Os dragões foram soltos, sor.
Que os Sete salvem todos nós, o velho cavaleiro pensou. 

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