sexta-feira, 4 de outubro de 2013

68 - O DOMADOR DE DRAGÕES


A noite passou arrastando-se em lentos passos negros. A hora do morcego deu vez à hora da enguia, a hora da enguia à hora dos fantasmas. O príncipe permaneceu na cama, encarando o teto, sonhando sem dormir, lembrando-se, imaginando, virando-se em seus lençóis de linho, sua mente febril com pensamentos de fogo e sangue.
Finalmente, aflito pelo descanso, Quentyn Martell foi para seu solar, onde se serviu de uma taça de vinho e bebeu na escuridão. O gosto era um doce consolo em sua língua, então acendeu uma vela e serviu-se novamente. O vinho me ajudará a dormir, disse para si mesmo, mas sabia que era mentira,
Encarou a vela por um longo tempo, então colocou a taça de lado e levou a palma da mão por sobre a chama. Foi necessário cada bocado de vontade para abaixá-la até que o fogo tocasse sua carne, e, quando isso aconteceu, puxou a mão com um grito de dor.
- Quentyn, está louco?
Não, apenas assustado. Não quero me queimar.
- Gerris?
- Ouvi você se mexendo.
- Não podia dormir.
- Queimaduras são uma cura para isso? Um pouco de leite quente e uma canção de ninar serviriam melhor. Ou, melhor ainda, posso levá-lo ao Templo das Graças e encontrar uma garota para você.
- Urna prostituta, você quer dizer.
- Eles as chamam de Graças. Elas vêm em cores diferentes. As vermelhas são as únicas que fodem. - Gerris sentou-se do outro lado da mesa. - As septãs da nossa terra deviam adotar esses costumes, se me perguntar. Já reparou que as velhas septãs sempre parecem ameixas secas? É isso o que uma vida de castidade fará com você.
Quentyn olhou o terraço lá fora, onde as sombras da noite ficavam mais espessas entre as árvores. Podia ouvir o som suave de água caindo.
- Isso é chuva? Suas prostitutas terão ido embora.
- Nem todas elas. Há esses pequenos recantos nos jardins de prazer, onde elas esperam todas as noites até que um homem as escolha. Aquelas que não são escolhidas devem permanecer ali até que o sol venha, sentindo-se sozinhas e negligenciadas. Podemos consolá-las.
- Elas podiam me consolar, é isso o que você quer dizer.
- Isso também.
- Não é o tipo de consolo que preciso.
- Discordo. Daenerys Targaryen não é a única mulher no mundo. Quer morrer donzelo?
Quentyn não queria morrer de jeito nenhum. Quero voltar para Paloferro e beijar suas duas irmãs, casar com Gwyneth Yronwood, vê-la florescer na beleza, ter um filho com ela. Quero cavalgar em torneios, fazer falcoaria e caçar, visitar minha mãe em Norvos, ler alguns dos livros que meu pai me manda. Quero ver Cletus, Will e Meistre Kedry vivos novamente.
- Você acha que Daenerys ficaria satisfeita de saber que me deitei com uma prostituta?
- Pode ser que sim. Homens podem gostar de donzelas, mas mulheres gostam de homens que sabem o que fazer na cama. É outro tipo de esgrima. Exige treinamento para se ficar bom nisso.
A zombaria doeu. Quentyn nunca se sentira tão menino como quando estivera diante de Daenerys Targaryen, pedindo sua mão. A ideia de ir para a cama com ela o aterrorizava quase tanto quanto seus dragões. E se não pudesse agradá-la?
- Daenerys tem um amante - disse, defensivamente. - Meu pai não me mandou aqui para entreter a rainha na cama. Você sabe por que viemos.
- Você não pode se casar com ela. Ela tem um marido.
- Ela não ama Hizdahr zo Loraq.
- O que amor tem a ver com casamento? Um príncipe devia saber essas coisas. Seu pai se casou por amor, dizem. Quanta alegria teve com isso?
Pouca e ainda menos. Doran Martell e sua esposa norvoshi passaram metade do casamento separados e a outra metade discutindo. Fora a única coisa impensada que seu pai já fizera, pelo que ouvira, a única vez que seguira o coração em vez da cabeça, e vivera para lastimar isso.
- Nem todos os riscos levam à ruína - insistiu. - Este é meu dever. Meu destino. - Suponho que você seja meu amigo, Gerris. Por que zomba das minhas esperanças? Tenho dúvidas suficientes sem que jogue óleo na fogueira do meu medo. - Esta será minha grande aventura.
- Homens morrem em grandes aventuras.
Ele não estava errado. Estava nas histórias, também. O herói sai com os amigos e companheiros, enfrenta perigos, volta para casa triunfante. Apenas alguns de seus companheiros não retornam. O herói nunca morre, no entanto. Eu devo ser o herói.
- Tudo o que preciso é coragem. Quer que Dorne se lembre de mim como um fracassado?
- Dorne não se lembra de nós há muito tempo.
Quentyn chupou o ponto queimado na palma da mão.
- Dorne se lembra de Aegon e suas irmãs. Dragões não são esquecidos tão facilmente. Eles se lembrarão de Daenerys também.
- Não se ela estiver morta.
- Ela vive. - Ela tem que estar viva. - Está perdida, mas posso encontrá-la. - E, quando eu fizer isso, ela olhará para mim do jeito que olha para seu mercenário. Uma vez que eu tenha provado meu valor para ela.
- Nas costas de um dragão?
- Ando a cavalo desde que tinha seis anos de idade.
- E já foi jogado uma ou duas vezes.
- Isso nunca me impediu de voltar à sela.
- Você nunca foi jogado a trezentos metros do chão - Gerris apontou. - E cavalos raramente transformam seus cavaleiros em ossos torrados e cinzas.
Conheço os perigos.
- Não ouvirei mais isso. Você tem minha permissão para ir. Encontre um navio e corra para casa, Gerris. - O príncipe se levantou, soprou a vela e se arrastou de volta para a cama e para os lençóis de linho molhados de suor. Eu devia ter beijado uma das gêmeas Drinkwater, ou talvez as duas. Devia tê-las beijado enquanto podia. Eu devia ter ido para Norvos ver minha mãe e o lugar em que ela nasceu, então ela saberia que não a esqueci. Ele podia ouvir a chuva caindo do lado de fora, batendo contra os tijolos.
Quando a hora do lobo rastejou sobre eles, a chuva ainda caía de forma constante, correndo para baixo em uma torrente fria que logo transformaria as ruas de tijolos de Meereen em rios. Os três dornenses quebraram o jejum no frio da madrugada - uma refeição simples de fruta, pão e queijo, empurrada para baixo com leite de cabra. Quando Gerris foi se servir de uma taça de vinho, Quentyn o interrompeu.
- Sem vinho. Haverá tempo suficiente para beber depois.
- Esperemos que sim - disse Gerris.
O grandão olhou pelo terraço.
- Eu sabia que ia chover - disse, em um tom sombrio. - Meus ossos doíam noite passada. Eles sempre doem antes da chuva. Os dragões não gostarão disso. Fogo e água não combinam, e isso é um fato. Você pega uma boa fogueira acesa, brilhando bonita, começa a chover e logo depois a madeira está ensopada e as chamas estão mortas.
Gerris riu.
- Dragões não são feitos de madeira, Arch.
- Alguns são. Aquele velho Rei Aegon, o tarado, construiu dragões de madeira para nos conquistar. Terminou mal, no entanto.
Assim como isso pode acabar, o príncipe pensou. As loucuras e fracassos de Aegon, o Indigno, não diziam respeito a ele, mas estava cheio de dúvidas e receios. As brincadeiras de seus amigos apenas faziam sua cabeça doer. Eles não entendem. Eles podem ser dornenses, mas eu sou Dorne. Daqui a anos, quando eu estiver morto, esta será a canção que vão cantar de mim. Ergueu-se abruptamente.
- Chegou a hora.
Seus amigos ficaram em pé. Sor Archibald secou a última gota de seu leite de cabra e limpou o bigode branco do lábio superior com as costas da grande mão.
- Vou pegar nosso traje de pantomimeiros.
Voltou com o pacote que tinham recebido do Príncipe Esfarrapado em seu segundo encontro. Dentro estavam três longos mantos com capuz feito de uma miríade de pequenos quadrados de tecido costurados, três porretes, três espadas curtas, três máscaras de bronze polido. Um touro, um leão e um macaco.
Tudo o que era necessário para ser uma Besta de Bronze.
- Eles podem perguntar por uma senha - o Príncipe Esfarrapado os avisara, quando entregou o pacote. - É cão.
- Tem certeza disso? - Gerris lhe perguntou.
- Certeza suficiente para apostar uma vida.
O príncipe entendeu o que ele quis dizer.
- Minha vida.
- Essa seria a primeira.
- Como aprendeu essa senha?
- Nós nos encontramos casualmente com algumas Bestas de Bronze e Meris lhes perguntou com gentileza. Mas um príncipe deveria saber que não se fazem tais perguntas, dornense. Em Pentos, temos um ditado. Nunca pergunte ao padeiro o que vai na torta. Apenas coma.
Apenas coma. Havia sabedoria nisso, Quentyn supôs.
- Eu serei o touro - Arch anunciou.
Quentyn lhe passou a máscara de touro.
- O leão para mim.
- O que me torna um macaco. - Gerris pressionou a máscara de macaco no rosto. - Como eles respiram com essas coisas?
- Apenas coloque. - O príncipe não estava no clima para brincadeiras.
O pacote continha um chicote também; um pedaço desagradável de couro velho com um punho de cobre e osso, robusto o suficiente para arrancar a pele de um boi.
- Para que é isso? - Arch perguntou.
- Daenerys usou um chicote para intimidar a besta negra. - Quentyn enrolou o chicote e o pendurou no cinto. - Arch, traga seu martelo também. Podemos precisar dele.
Não era uma coisa fácil entrar na Grande Pirâmide de Meereen à noite. As portas eram fechadas e lacradas todos os dias ao pôr do sol e permaneciam fechadas até a primeira luz. Sentinelas eram colocadas em cada entrada, e mais sentinelas patrulhavam o terraço inferior, de onde podiam olhar para a rua. Antigamente, essas sentinelas eram Imaculados. Agora eram Bestas de Bronze. E isso faria toda a diferença, Quentyn esperava.
O turno mudaria quando o sol se levantasse, mas ainda faltava meia hora para o amanhecer quando os três dornenses fizeram o caminho pelas escadas de serviço. As paredes ao redor deles eram feitas de tijolos de meia centena de cores, mas as sombras transformavam todos em cinza, até serem tocados pela luz da tocha que Gerris carregava. Não encontraram ninguém na longa descida. O único som era o roçar das botas nos tijolos gastos sob seus pés.
Os portões principais da pirâmide davam de frente para a praça central de Meereen, mas os dornenses foram para uma entrada lateral, aberta em um beco. Esses eram os portões que os escravos usavam antigamente enquanto tratavam dos assuntos de seus mestres, onde o povo e os comerciantes iam e vinham fazer suas entregas.
As portas eram de bronze sólido, fechadas com uma pesada barra de ferro. Diante delas estavam duas Bestas de Bronze, armadas com porretes, lanças e espadas curtas. Luzes de tochas brilhavam no bronze polido de suas máscaras - um rato e uma raposa. Quentyn gesticulou para o grandão permanecer nas sombras. Ele e Gerris seguiram juntos.
- Vieram cedo - a raposa disse.
Quentyn deu de ombros.
- Podemos ir embora, se quiser. Agradecemos por ficarem com nosso turno. - Ele não soava nem um pouco ghiscari, sabia disso; mas metade das Bestas de Bronze eram escravos libertos, com toda a sorte de línguas nativas, então seu sotaque passou despercebido.
- Foda-se isso - comentou o rato.
- Nos dê a senha do dia - disse a raposa.
- Cão - disse o dornense.
As duas Bestas de Bronze trocaram um olhar. Por três longos segundos, Quentyn teve medo de que algo desse errado, que de alguma forma Bela Meris e o Príncipe Esfarrapado tivessem conseguido a senha errada. Então a raposa grunhiu.
- Cão, então - disse. - Os portões são seus. - Quando partiram, o príncipe começou a respirar novamente.
Não tinham muito tempo. O alívio real viria, sem dúvida, em breve.
- Arch - o príncipe chamou, e o grandão apareceu, com a luz da tocha brilhando em sua máscara de touro. - A barra. Rápido.
A barra de ferro era grossa e pesada, mas bem lubrificada. Sor Archibald não teve problemas para erguê-la. Como estava parado na outra extremidade, Quentyn empurrou os portões e Gerris passou por eles, acenando com a tocha.
- Traga-o agora. Seja rápido com isso.
O carroção de açougueiro estava do lado de fora, esperando no beco. O condutor deu uma pancada na mula e começou a se deslocar com barulho, as rodas de ferro soando alto nos tijolos. A carcaça de um boi esquartejado enchia o carroção, juntamente com duas ovelhas mortas. Meia dúzia de homens entrou a pé. Cinco vestiam os mantos e as máscaras das Bestas de Bronze, mas Bela Meris não se preocupou em se disfarçar.
- Onde está seu senhor? - Quentyn perguntou para Meris.
- Não tenho senhor - ela respondeu. - Se você está falando do seu companheiro príncipe, está por perto, com cinquenta homens. Tragam o dragão para fora, e ele o levará em segurança, como prometido. Caggo comanda aqui.
Sor Archibald deu um olhar azedo para o carroção do açougueiro.
- Essa carroça será grande o suficiente para caber um dragão? - perguntou.
- Deve ser. Nele cabem dois bois. - O Matacadáver estava vestido como uma Besta de Bronze, o rosto costurado e marcado por cicatrizes escondido atrás de uma máscara de naja, mas o familiar arakh negro pendurado em seu quadril o denunciava. - Ouvimos dizer que essas bestas são menores do que o monstro da rainha.
- O fosso retardou o crescimento deles. - As leituras de Quentyn sugeriam que o mesmo ocorrera nos Sete Reinos. Nenhum dos dragões gerados e criados no Fosso de Dragões em Porto Real sequer se aproximara do tamanho de Vhagar ou Meraxes, muito menos do Terror Negro, o monstro do Rei Aegon. - Trouxe correntes suficientes?
- Quantos dragões você tem? - disse Bela Meris. - Temos correntes suficientes para dez, escondidas sob a carne.
- Muito bem. - Quentyn sentia vertigens. Nada daquilo parecia muito real. Num momento, parecia um jogo, no seguinte, algum pesadelo, como um sonho ruim onde ele se encontrava abrindo uma porta escura, sabendo que o horror e a morte esperavam do outro lado, e, mesmo assim, era incapaz de parar. As palmas das mãos estavam lisas de suor. Ele as secou nas pernas e disse: - Haverá mais sentinelas do lado de fora do fosso.
- Sabemos disso - disse Gerris.
- Precisamos estar prontos para eles.
- Nós estamos - disse Arch.
A barriga de Quentyn se retorceu. Ele sentiu a súbita necessidade de suas entranhas se moverem, mas sabia que não ousaria pedir para sair agora.
- Por aqui, então. - Nunca se sentira tanto como um menino como naquele momento. Mesmo assim, eles o seguiram; Gerris e o grandão, Meris, Caggo e os outros Soprados pelo Vento. Dois dos mercenários haviam pegado bestas de algum lugar escondido dentro do carroção.
Além dos estábulos, o nível do solo da Grande Pirâmide tornava-se um labirinto, mas Quentyn Martell estivera ali com a rainha e se lembrava do caminho. Passaram sob três imensos arcos de tijolos, então desceram uma rampa íngreme de pedra para dentro das profundezas, através de calabouços e câmaras de tortura, e passaram por um par de fundas cisternas de pedra. Seus passos ecoavam cavernosos pelas paredes, a carroça de açougueiro avançando ruidosamente atrás deles. O grandão arrancou uma tocha de um candeeiro para liderar o caminho.
Por fim, um par de pesadas portas de ferro erguia-se diante deles, comidas pela ferrugem e trancadas, fechadas com uma corrente comprida cujos elos eram grossos como os braços de um homem. O tamanho e a grossura daquelas portas eram suficientes para fazer Quentyn Martell questionar a sensatez de sua conduta. E, ainda pior, ambas estavam claramente prejudicadas por algo de dentro tentando sair. O ferro espesso estava rachado e partido em três lugares, e o canto superior da porta esquerda parecia parcialmente derretido.
Quatro Bestas de Bronze permaneciam guardando as portas. Três tinham lanças longas; o quarto, o oficial, estava armado com uma espada curta e uma adaga. Sua máscara havia sido feita na forma da cabeça de um basilisco. Os outros três estavam mascarados como insetos.
Gafanhotos, Quentyn percebeu.
- Cão - disse.
O oficial enrijeceu.
Isso foi o suficiente para que Quentyn Martell percebesse que algo dera errado.
- Peguem-nos - resmungou, enquanto a mão do basilisco seguia para a espada curta.
Era rápido, aquele oficial. O grandão era mais rápido. Avançou a tocha na direção do gafanhoto mais próximo, trouxe-a de volta e apanhou seu martelo de guerra. A lâmina do basilisco mal saíra da bainha de couro quando a ponta do martelo atingiu sua têmpora, triturando o bronze fino de sua máscara, a carne e os ossos embaixo. O oficial cambaleou meio passo para o lado antes dos joelhos se dobrarem e ele cair no chão, o corpo todo tremendo grotescamente.
Quentyn olhava paralisado, com a barriga roncando. Sua própria lâmina ainda estava na bainha. Não queria que tivesse chegado a isso. Seus olhos estavam fixos no oficial morrendo diante dele, sacudindo-se. A tocha estava caída no chão, gotejando, fazendo com que cada sombra saltasse e se contorcesse em um arremedo monstruoso do tremor do homem morto. O príncipe não viu a lança do gafanhoto vindo em sua direção até que Gerris trombou nele, empurrando-o para o lado. A ponta da lança roçou a bochecha da cabeça de leão que ele usava. Mesmo assim, o golpe foi tão violento que quase arrancou a máscara. Teria ido direto na minha garganta, o príncipe pensou, atordoado.
Gerris xingava enquanto os gafanhotos os cercavam. Quentyn ouviu o som de pés correndo. Então os mercenários irromperam das sombras. Uma das sentinelas olhou de relance para eles o tempo suficiente para que Gerris passasse por sua lança. Enfiou a ponta da espada sob a máscara de bronze e através da garganta do homem que a usava, enquanto o segundo gafanhoto via uma flecha de besta brotar em seu peito.
O último gafanhoto largou a lança.
- Eu me rendo. Eu me rendo.
- Não. Você morre. - Caggo arrancou a cabeça do homem com um golpe de arakh, o aço valiriano cortando através da carne, ossos e cartilagem como se fossem feitos de sebo.
- Muito barulho - reclamou. - Qualquer homem com ouvidos vai escutar.
- Cão - Quentyn disse. - A senha do dia devia ser cão. Por que não nos deixaram passar? Dissemos ...
- Nós dissemos que seu esquema era loucura, se esqueceu? - falou Bela Merris. - Faça o que veio fazer.
Os dragões, o Príncipe Quentyn pensou. Sim. Viemos pelos dragões. Sentia-se como se estivesse doente. O que estou fazendo aqui? Pai, por quê? Quatro homens mortos em um piscar de olhos, e pelo quê?
- Fogo e sangue - murmurou - sangue e fogo. - O sangue estava empoçado em seus pés, embebendo o chão de tijolos. O fogo estava além daquelas portas. - As correntes ... não temos chave...
Arch disse:
- Eu tenho a chave. - Balançou o martelo de guerra com força e rapidez. Faíscas brilharam quando a cabeça do martelo acertou a porta. E então novamente, novamente, novamente. Na quinta balançada, o cadeado quebrou e as correntes caíram com um chocalhar tão alto que Quentyn teve certeza de que metade da pirâmide os escutara.
- Tragam o carroção. - Os dragões ficariam mais dóceis depois de alimentados. Deixem que se empanturrem de carne de carneiro torrada.
Archibald Yronwood agarrou as portas de ferro e puxou para abri-las. As dobradiças enferrujadas soltaram um par de gritos, para todos aqueles que podiam ter dormido durante o arrombamento do cadeado. Um banho de súbito calor os assaltou, pesado com odores de cinzas, enxofre e carne queimada.
Estava escuro além das portas, uma escuridão sombria que parecia viva e ameaçadora, faminta. Quentyn podia sentir que havia algo naquela escuridão, enrolado e esperando. Guerreiro, dê-me coragem, rezou. Não queria fazer aquilo, mas não via outro jeito. Por que mais Daenerys teria me mostrado os dragões? Ela queria que eu me provasse para ela. Gerris lhe deu uma tocha. O príncipe caminhou através das portas.
O verde é Rhaegal, o branco Viserion, ele se lembrou. Use seus nomes, comande-os, fale com eles calmamente mas com firmeza. Domine-os, como Daenerys dominou Drogon na arena. A garota estava sozinha, vestida em fiapos de seda, mas sem medo. Não devo ter medo. Ela fez isso, então eu também posso. A coisa principal era não demonstrar medo. Animais podem sentir o medo, e dragões ... O que ele sabia sobre dragões? O que qualquer homem sabe sobre dragões? Eles tinham estado ausentes do mundo por mais de um século.
A borda do fosso estava bem na frente dele. Quentyn avançou lentamente, movendo a tocha de um lado para o outro. Paredes, chão e teto bebiam a luz. Queimados, percebeu. Tijolos queimados negros, desintegrando-se em cinzas. O ar ficava mais quente a cada passo que dava. Começou a suar.
Dois olhos ergueram-se diante dele.
Bronze, eles eram, brilhantes como escudos polidos, incandescendo com o próprio calor, queimando atrás de um véu de fumaça que se levantava das narinas do dragão. A luz da tocha de Quentyn banhava as escamas verde-escuras, o verde do musgo nas profundezas da floresta ao entardecer, bem antes das últimas luzes desaparecerem. Então o dragão abriu a boca, e luz e calor o banharam. Atrás de uma fileira de dentes negros afiados, ele vislumbrou o ardor de uma fornalha, a cintilação de uma lareira, cem vezes mais brilhante que sua tocha. A cabeça do dragão era maior do que a de um cavalo, e o pescoço se esticava mais e mais, desenrolando-se como uma grande serpente verde enquanto a cabeça se erguia, até que aqueles dois brilhantes olhos de bronze o encararam de cima.
Verde, o príncipe pensou, suas escamas são verdes.
- Rhaegal - disse. Sua voz estava presa na garganta, e saiu como um coaxar quebrado. Sapo, pensou, estou me tornando o Sapo novamente. - A comida - resmungou, lembrando-se. - Tragam a comida.
O grandão o ouviu. Arch arrancou uma das ovelhas do carroção, segurando-a em duas patas, então girou-a e lançou-a no fosso.
Rhaegal pegou o animal no ar. Sua cabeça rodopiou, e de entre suas mandíbulas um jato de chama irrompeu, uma tempestade rodopiante de fogo laranja e amarelo com veios verdes. A ovelha estava queimando antes que começasse a cair. Antes que a carcaça defumada pudesse atingir os tijolos, os dentes do dragão se fecharam ao redor dela. Um halo de chamas ainda tremulava sobre o corpo. O ar fedia a lã queimada e enxofre. Fedor de dragão.
- Achei que eram dois - o grandão disse.
Viserion. Sim. Onde está Viserion? O príncipe abaixou sua tocha, para jogar um pouco de luz na escuridão abaixo. Podia ver o dragão verde que rasgava a carcaça defumada da ovelha, a longa cauda batendo de um lado para o outro enquanto comia. Uma grossa coleira de ferro era visível em seu pescoço, com um metro de corrente quebrada pendurada nela. Elos quebrados estavam espalhados pelo chão do fosso entre ossos enegrecidos; metal retorcido, parcialmente derretido. Rhaegal estava acorrentado à parede e ao chão da última vez que estive aqui, o príncipe se lembrou, mas Viserion estava pendurado no teto. Quentyn recuou, ergueu a tocha e esticou a cabeça para trás.
Por um momento, viu apenas os arcos enegrecidos dos tijolos acima, queimados por chama de dragão. Um filete de cinzas chamou sua atenção, traindo movimento. Algo claro, meio escondido, movendo-se. Ele fez uma caverna para si, o príncipe percebeu. Uma toca nos tijolos. As fundações da Grande Pirâmide de Meereen eram maciças e grossas para suportar o peso da imensa estrutura sobre suas cabeças; mesmo o interior das paredes era três vezes mais grosso do que qualquer muralha de castelo. Mas Viserion havia cavado para si um buraco nelas, com chama e garras, um buraco grande o suficiente para dormir dentro dele.
E nós acabamos de despertá-lo. Ele podia ver o que se parecia com uma imensa serpente branca desenrolando-se dentro da parede, bem onde a estrutura se curvava para começar o teto. Mais cinzas caíram, assim como um bocado de tijolos despedaçados. A serpente se transformou em um pescoço e uma cauda, e então a longa cabeça chifruda do dragão apareceu, seus olhos brilhando na escuridão como carvões dourados. Sacudiu as asas, esticando-as.
Todos os planos de Quentyn haviam abandonado sua cabeça. Podia ouvir Caggo Matacadáver gritando para seus mercenários. As correntes, está mandando que peguem as correntes, o príncipe dornense pensou. O plano era alimentar as bestas e acorrentá-las durante seu torpor, exatamente como a rainha fizera. Um dragão ou, preferivelmente, ambos.
- Mais carne - Quentyn disse. Assim que as bestas estiverem alimentadas, ficarão mais lentos. Ele havia visto o trabalho com serpentes em Dorne, mas aqui, com aqueles monstros ... - Tragam... tragam ...
Viserion lançou-se do teto, as claras asas de couro se desdobrando em toda a largura. A corrente quebrada pendurada em seu pescoço balançava freneticamente. Sua chama acendeu o fosso, ouro claro permeado de vermelho e laranja, e o ar viciado explodiu em uma nuvem de cinzas quentes e enxofre, enquanto as asas brancas batiam e batiam novamente.
Uma mão agarrou Quentyn pelo ombro. A tocha caiu de sua mão, para rodar pelo chão e então cair dentro do fosso, ainda queimando. Ele se encontrou cara a cara com um macaco de bronze. Gerris.
- Quent, isso não vai funcionar. Eles são muito selvagens, eles ...
O dragão veio para baixo, entre os dornenses e a porta, com um rugido que teria feito cem leões fugirem. Sua cabeça movia-se de um lado para o outro enquanto inspecionava os intrusos - os dornenses, os Soprados pelo Vento, Caggo. Por último e mais longamente, a besta encarou Bela Meris, farejando. A mulher, Quentyn percebeu. Ele sabe que ela é fêmea. Está procurando por Daenerys. Ele quer sua mãe e não entende por que ela não está aqui.
Quentyn se libertou de Gerris.
- Viserion - chamou. O branco é Viserion. Por meio segundo, teve medo de ter se enganado. - Viserion - chamou novamente, hesitando para encontrar o chicote pendurado em seu cinto. Ela intimidou o negro com um chicote. Preciso fazer o mesmo.
O dragão sabia seu nome. Virou a cabeça e seu olhar se encontrou com o do príncipe dornense por três longos segundos. Chamas claras queimavam por trás das brilhantes adagas negras que eram seus dentes. Os olhos eram lagos de ouro derretido, e fumaça saía das narinas.
- Para baixo - Quentyn disse. Então tossiu, e tossiu novamente.
O ar estava grosso com a fumaça, e o cheiro de enxofre era asfixiante.
Viserion perdera o interesse. O dragão se virou na direção dos Soprados pelo Vento e deu uma guinada para a porta. Talvez pudesse sentir o sangue das sentinelas mortas, ou a carne no carroção do açougueiro. Ou talvez apenas tivesse visto que o caminho estava livre.
Quentyn ouviu os mercenários gritarem. Caggo pedia as correntes, e Bela Meris gritava para alguém se afastar. O dragão se moveu de modo desajeitado no chão, como um homem rastejando sobre os joelhos e cotovelos, mas mais rapidamente do que o príncipe dornense teria acreditado. Quando os Soprados pelo Vento demoraram demais para sair de seu caminho, Viserion soltou outro rugido. Quentyn ouviu o barulho de correntes e o arranhar profundo de uma besta.
- Não - gritou - não, não, não - mas era tarde demais. O tolo foi tudo o que teve tempo de pensar enquanto a seta raspava o pescoço de Viserion para sumir na escuridão. Uma linha de fogo cintilou em seu rastro, sangue de dragão, brilhando dourado e vermelho.
O besteiro procurava desajeitadamente outra flecha quando os dentes do dragão se fecharam ao redor de seu pescoço. O homem usava a máscara de uma Besta de Bronze, à semelhança de um temível tigre. Quando derrubou a arma para tentar abrir as mandíbulas de Viserion, uma chama saiu da boca do tigre. Seus olhos queimaram com um suave estalo, e o bronze ao redor deles começou a escorrer. O dragão arrancou um pedaço de carne, a maior parte do pescoço do mercenário, então o engoliu enquanto o cadáver em chamas caía no chão.
Os outros Soprados pelo Vento estavam recuando. Aquilo era mais do que Bela Meris tinha estômago para suportar. A cabeça chifruda de Viserion moveu-se para a frente e para trás, entre eles e sua presa, mas depois de um momento esqueceu-se dos mercenários e dobrou o pescoço para arrancar outro bocado do morto. Uma perna, desta vez.
Quentyn deixou o chicote desenrolado.
- Viserion - chamou, mais alto, agora. Podia fazer isso, faria isso, seu pai o enviara aos confins da terra para isso, ele não falharia. - VISERION! - Agitou o chicote no ar com um estalido que ecoou pelas paredes enegrecidas.
A cabeça clara se ergueu. Os grandes olhos dourados se estreitaram. Tufos espiralados de fumaça subiam das narinas do dragão.
- Para baixo - o príncipe ordenou. Não deve deixá-lo sentir seu medo. - Para baixo, para baixo, para baixo. - Trouxe o chicote rodando e estalou um golpe na cara do dragão.
Viserion assobiou.
E então um vento quente o acertou e ele ouviu o som de asas de couro, e o ar estava cheio de cinzas e um monstruoso rugido veio ecoando pelos tijolos queimados e enegrecidos, e pôde escutar seus amigos gritando freneticamente. Gerris chamava seu nome, uma vez e outra, e o grandão berrava:
- Atrás de você, atrás de você, atrás de você!
Quentyn virou-se e jogou o braço esquerdo no rosto para proteger os olhos do vento da fornalha. Rhaegal, ele se lembrou, o verde é Rhaegal.
Quando ergueu seu chicote, viu que o açoite estava queimando. Sua mão também. Todo ele, todo ele estava queimando.
Oh, pensou. Então começou a gritar. 

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